Em “A Pérola Negra do Samba”, Luiz Antonio Pilar oferece mais do que direção: entrega uma montagem cinematográfica, uma edição viva dos principais quadros da trajetória de Jovelina Pérola Negra. O espetáculo, em cartaz no Teatro Carlos Gomes, tem movimentação precisa e fluida, sustentada por quatro atores capazes de representar uma multiplicidade de personagens — um mosaico da vida e da obra da artista.
Pilar, conhecido por seu olhar apurado sobre narrativas negras e populares, conduz a encenação com ritmo, poesia e visualidade. O resultado é uma homenagem à estética do subúrbio e à força do samba.
O texto de Leonardo Bruno sustenta a cena com vigor dramatúrgico. O recurso da personagem Cebola, duplo cômico e sensível, ilumina os contornos de Jovelina, revelando sua personalidade sem didatismo. Thalita Floriano, como Cebola, dosa humor e emoção, criando uma figura espirituosa e de presença marcante. Já Afro Flor, no papel-título, assume Jovelina sem recorrer ao mimetismo: sua interpretação é feita de corpo, voz e entrega — sustentando o peso simbólico da personagem com carisma e naturalidade. Fernanda Sabot se desdobra em papéis diversos, diferenciando cada um com sutileza e precisão, enquanto Thiago Thomé dá vida aos personagens masculinos com a leveza malandra do samba: canta, dança e atua no balanço certo, em harmonia com o figurino emblemático de malandro.


Os figurinos de Ruth Alves, conhecidos pelo acabamento impecável, são visualmente potentes e têm função narrativa: traduzem a cor, o calor e a força digna do universo suburbano carioca. O cenário de Lorena Lima, inspirado nas feiras livres — com mais de 300 caixas —, cria o pano de fundo ideal para essa celebração popular. A preparação corporal de Luiza Loroza é outro destaque: o corpo dos atores pulsa no compasso dos passos, dos gestos e da dança que traduzem o samba em sua raiz.


Mais do que um musical biográfico, “A Pérola Negra do Samba” é um manifesto cênico pela memória de uma mulher cuja voz grave e inigualável deu tom à resistência feminina e negra no samba. Pilar e Leonardo constroem uma experiência que emociona pela beleza visual, pela música impecável e pela força simbólica de reviver Jovelina — não como mito distante, mas como mulher do povo, de riso largo e alma luminosa. É teatro que samba e samba que pensa. Um tributo necessário.
Entrevista com Ruth Alves, figurinista do espetáculo:
1- Ser porta-estandarte muda o jeito como você enxerga o corpo e o movimento nas roupas?
Muda completamente. O corpo passa a ser uma extensão da roupa, e a roupa uma tradução do movimento. Ser porta-estandarte me fez entender como o figurino precisa respirar junto com quem o veste.
2- E para você, o que o figurino revela sobre a alma da mulher em cena?
O figurino é uma linguagem silenciosa, mas cheia de significado. Ele precisa revelar, ajudar a atriz a construir sua personagem. É um aliado — nunca pode jogar contra. Em cena, o figurino atua como uma segunda pele e, ao mesmo tempo, como uma máscara protetora. Ele tem que permitir que a atriz mostre a alma de sua personagem. Tem que contribuir, acompanhar suas nuances mais íntimas. É a mão direita e a esquerda das minhas atrizes.
3- Em Jovelina, teve algo que te surpreendeu ou te emocionou durante a criação?
A história da Jovelina em si é muito emocionante. Ela teve uma carreira meteórica — apenas 13 anos — e deixou um legado imenso. Mas esse legado não é facilmente encontrado. Foi difícil achar referências visuais sobre ela, há pouquíssimo material. O que mais me emociona, e que infelizmente é comum entre artistas pretos, é ver como muitas vezes eles não acreditam na própria competência, não acreditam na própria arte. A Jovelina era assim. Achava que o sucesso do primeiro disco dela foi sorte, acaso, mérito dos outros cantores. Isso é doloroso e, ao mesmo tempo, inspirador.
4-Este ano você criou figurinos para três peças com mulheres no protagonismo — Ruth, Léa e Jovelina. Pensou em uma harmonia entre elas?
Neste ano, entre as peças que criei, três falavam de mulheres pretas: Jovelina, Léa Garcia e Ruth de Moraes. Fiz também um espetáculo sobre uma quarta mulher preta, Alice Brandão, ainda viva. O que as liga, infelizmente, é o fato de não terem o reconhecimento que merecem. São mulheres de potência, mas que não ocupam o lugar que deveriam. Vieram de origens humildes, enfrentaram todos os tipos de preconceito. No caso da Jovelina, teve apenas 13 anos para contar sua história — e, como o espetáculo diz, sua história a gente não encontra nos livros. Quis dar a elas, através dos figurinos, empoderamento e força.
5-Como é dividir o trabalho com seu marido, o diretor Luiz Antonio Pilar?
Tem as dores e as delícias, né? É muito bom, porque temos praticamente 24 horas para conversar, trocar ideias. Às vezes tenho uma ideia e ele está ali para ouvir, para ajudar. Modéstia à parte, ele é uma das pessoas mais inteligentes que conheço — e conheço muita gente inteligente! Ele entende de tudo e tem um olhar incrível sobre como retratar e dar voz ao povo preto. Claro que às vezes há discordâncias, e isso entra em casa (risos), mas nada que não se resolva. No dia seguinte, tudo está zerado, porque o mais importante é colocar o espetáculo de pé.
6- Como nasce um figurino no seu processo?
Meu processo criativo começa com a dramaturgia, com o texto. Leio a primeira vez sem pontuação, sem nenhum julgamento — só para absorver. Depois leio mais duas vezes e começo a sinalizar ideias. Paralelamente, inicio a pesquisa visual, recolho imagens, referências, registros de apresentações e de vida das biografadas. Tudo que puder ter é melhor. Mas o fator mais importante é o processo com os atores: ali vou construindo, junto deles, o figurino de cada personagem. Gosto que o público reconheça, através do figurino, o artista. Que veja nele uma extensão do corpo e da alma da atriz. O figurino precisa ter trajetória, contribuir com a personagem e dialogar com ela — mesmo em silêncio.
SERVIÇO:
Sexta, sábado e domingo, com preços populares, até este domingo (09/11).

