Um descuido e lá estava eu na cena do crime

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'Alta noite já se ia', cantou Marisa Monte em seu show - mas antes, numa rua do Rio.... — Foto: Leo Aversa


Todo dia a cena me chega pelo celular, e deve chegar no seu também, um novo clássico banalizado da selva urbana. Eis que de repente, numa noite de luar, quando saía para passear, lá estava eu, não mais como espectador, mas personagem ativo dela. Estava em vias de me tornar a próxima vítima na cena mais manjada da atual movida carioca de crimes, o clichê dos clichês da violência urbana – eu estava cercado pela famigerada dupla de motoqueiros.

O Rio é uma startup de modismos, e tanto saiu daqui a felicidade gringa da sandália de borracha com uma tira entre os dedos (talvez o maior peso hoje na balança de exportação) como os golpes da gangue da correntinha, o conto do paco, a saidinha de banco – e agora o esquete dos motociclistas que atacam em dose dupla, às vezes quádrupla, ou seja, com dois bandidos em cada uma das duas motos. Foi o meu caso.

Era noite de luar e eu saía para passear com meu broto, mais exatamente para ir ao Jockey ver a Marisa Monte com orquestra. Na primeira cena do filme em que me meti a contragosto, e é bem provável que ela esteja rodando no seu celular, lá estou ao lado do broto. Os dois, naquele momento, ainda vestiam a camiseta “Tô ligado”. Seguiam a cartilha cidadã atualizada, atentos às necessidades de se proteger contra as recentes formas de violência.

De dentro das grades do condomínio, rodeado de cercas eletrificadas e câmeras de luz verde, o casal espera o táxi, sabedor de que só deve sair dessa zona de conforto quando o carro já estiver estacionado na calçada e a placa confirmada com a que está no aplicativo. Alta noite já se ia, diz a música da Marisa, quando o Uber chegou e o casal, seguindo outro capítulo do manual de sobrevivência na selva, partiu em passo ligeiro para adentrá-lo.

Porém, e bota “porém” nisso, a cartilha de cuidados ao se circular por uma calçada, o ringue onde será tudo o que Deus quiser que seja, é enorme. Ao botar os pés nela, o casal fracassou na observação de um dos quesitos – e ainda carregava em mãos, luminosos, os celulares por onde tinham acompanhado a chegada do táxi e as condições do trânsito até o local do show. Por sua vez, o comboio motoqueiro ia em velocidade e só conseguiu parar 100 metros depois do casal – e este já recuperara a sagacidade necessária a quem quer sobreviver no Rio.

– Corre, moço, corre – os dois gritaram em uníssono para o taxista ao mesmo tempo em que se jogavam no banco traseiro, batendo a porta e olhando apavorados os motoqueiros que agora subiam na contramão os 100 metros que os separavam das vítimas – ou… supostas vítimas.

Teria sido mesmo uma tentativa de assalto? O desenho da cena, parecido com centenas já divulgados, dava toda a pinta que sim, e definitivamente não era a hora para perguntas. O taxista saiu em disparada, os motoqueiros passaram na contramão, de olho talvez em outras vítimas mais no alto da rua, ou, tão Rio!, no livre exercício cotidiano da bandalha no trânsito. Não sei. Pode ter sido um ataque de pânico diante da expectativa geral de que na calçada da vida carioca a sua moto e hora estão para chegar a qualquer momento. Certeza, tenho apenas que Marisa Monte canta cada vez melhor.



Com informações da fonte
https://oglobo.globo.com/cultura/joaquim-ferreira-dos-santos/coluna/2025/11/um-descuido-e-la-estava-eu-na-cena-do-crime-1.ghtml

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