Com vista panorâmica para o mar, em plena Zona Sul do Rio, o Vidigal recebeu quase 1 milhão de turistas nacionais e estrangeiros em 2023. Naquele ano, segundo levantamento feito pela prefeitura, atraiu mais gente do que cartões-postais consagrados como o Pão de Açúcar e o Cristo Redentor. Ontem, a dura realidade visitou o bairro novamente: pela manhã, operários que trabalhavam na construção de uma nova unidade municipal de saúde, antiga demanda dos moradores, foram expulsos por traficantes, em meio a avisos de que “o prédio pertence ao tráfico”. A notícia foi publicada em primeira mão pelo site Tempo Real. O GLOBO apurou que a Unidade de Polícia Pacificadora da área entrou em contato com a prefeitura e garantiu a segurança para a continuidade da obra. O município tentará retomar os trabalhos nesta quarta-feira (10).
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Obra irregular
Há dois anos, quando o Vidigal figurava entre os destinos turísticos mais cobiçados da cidade, o prédio na Rua Doutor Olinto Magalhães, agora reservado para uma futura Clínica da Família, teve sua construção embargada pelo poder municipal: era uma obra irregular, bancada pelo crime organizado, e já estava com dez andares. Em 2025, após liberação dos órgãos técnicos, a prefeitura iniciou obras para dar novo uso à edificação.
Operários suspendem trabalhos na futura clínica da família do Vidigal a mando de traficantes
Reprodução
A reforma, avaliada em R$ 6 milhões, começou pela demolição da metade dos pavimentos, já que as configurações urbanísticas da área só permitem prédios de até cinco andares. O espaço restante será destinado à unidade de saúde, que deve dispor de seis equipes de Saúde da Família, oito consultórios, sala de acompanhamento ambulatorial, medicação e um espaço para a realização de ressonância magnética. A previsão, antes do episódio de ontem, era de que os trabalhos fossem concluídos até o ano que vem.
De acordo com a Secretaria municipal de Saúde, a obra foi suspensa temporariamente, após o incidente, e um boletim de ocorrência foi registrado de forma on-line na Polícia Civil. A pasta informou ainda que vai pedir o apoio das forças de segurança do estado para que os trabalhos possam ser retomados o mais rapidamente. Titular da 15ª DP (Gávea), a delegada Daniela Terra afirma que vai instaurar investigação.
— Vamos apurar quem são os autores das ameaças, a ligação da facção e de seus líderes com a ocorrência e o porquê dessas intimidações — afirma.
Apesar da denúncia da prefeitura, o presidente da Associação de Moradores do Vidigal, Mazola Faria, divulgou uma nota na noite de terça-feira desmentindo que tenha havido ação de criminosos na obra.
O movimento da prefeitura para dar nova destinação ao imóvel ilegal é respaldado por um decreto municipal (nº 53.287) de 2 de outubro de 2023 que regulamenta a transformação de construções irregulares ligadas a associações criminosas. O texto dispõe sobre os procedimentos administrativos a serem adotados para o cumprimento da função social dessas propriedades, sugerindo que, verificada a integridade das construções, elas sejam convertidas, preferencialmente, em espaços voltados à promoção da saúde e da educação.
Uma nova clínica da família é exigência antiga do Vidigal, já que o Centro Municipal de Saúde Rodolpho Perissé, construído em 1981 e atualmente responsável pelo atendimento da comunidade, está sobrecarregado. Com espaço físico limitado, não tem conseguido dar conta do atendimento à população, estimada em 11.375 moradores pelo Censo 2022 do IBGE. Ainda em maio de 2023, moradores fizeram um abaixo-assinado pedindo a implementação de outra unidade de saúde.
— A clínica é um sonho de milhares de habitantes dentro do Vidigal. Até o momento, só temos um posto, construído quando a comunidade tinha bem menos moradores. Precisamos para ontem dessa nova unidade. Era para as obras terem começado em agosto do ano passado, mas atrasaram, e estamos nessa espera — relata um morador.
Promessa de campanha
Há um ano, durante a campanha eleitoral, o prefeito Eduardo Paes prometeu a inauguração do novo espaço, neste mesmo endereço.
— O prédio veio dessa indústria imobiliária do crime organizado e vamos transformá-lo numa Clínica da Família para o Vidigal, uma favela com a qual a gente está em falta — disse Paes, em setembro de 2024.
De janeiro de 2024 a julho deste ano, a Clínica da Família Rodolpho Perissé realizou 246 mil procedimentos, sendo 40 mil visitas domiciliares. A maior parte das ações é ligada a medidas como controle de pressão, monitoramento de glicose em pacientes diabéticos e exames de sangue.
O atual posto possui quatro médicos e, no total, 45 profissionais de saúde. Com a obra, a ideia é ampliar em 30% a quantidade de atendimentos feitos e assegurar uma melhor estrutura para atender até mesmo pequenas emergências.
Parque Piedade
Não é a primeira que uma obra da prefeitura encontra barreiras no crime organizado. No ano passado, o prefeito Eduardo Paes denunciou que bandidos exigiram R$ 500 mil da empreiteira responsável pela implantação do Parque Piedade, na Zona Norte, na área onde ficava a antiga Universidade Gama Filho.
Na ocasião, três homens teriam ido ao canteiro fazer a cobrança: “Ou paga ou a obra não sai”, teria dito um deles. Após a ameaça, a empresa notificou a prefeitura sobre a extorsão, e a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais (Draco/IE) instaurou uma investigação sobre o caso.
No mês anterior, em dezembro de 2023, a Polícia Federal e o Ministério Público fizeram uma operação na Zona Oeste que trouxe à tona como a quadrilha do miliciano Luís Antônio da Silva Braga, o Zinho, hoje preso, exigia dinheiro de empresas com projetos em andamento na região. Os investigadores localizaram no celular de um bandido planilhas de pagamentos com os nomes de três empreiteiras. A extorsão estava tão estabelecida que os valores podiam ser quitados por meio de Pix, e a empresa poderia até emitir nota fiscal. A cobrança era denominada pela organização criminosa como “taxas de segurança”.
No ano passado, foi necessário montar uma força tarefa para demolir três prédios irregularmente erguidos pelo tráfico na Rocinha, também na Zona Sul. Em um deles havia uma cobertura luxuosa com vista para o mar e até uma passagem secreta na parede com caminho para a área de mata. As construções custaram cerca de R$ 6 milhões ao tráfico.
No Complexo da Maré, na Zona Norte, investigações descobriram que o tráfico estava financiando a construção de 40 prédios a R$ 30 milhões na favela Parque União, comandada pelo Comando Vermelho. O terreno tem cerca de 3.314 metros quadrados de área, uma academia, um campo de futebol e o Ciep Professor César Pernetta, da rede estadual, como vizinho. As unidades eram vendidas por valores entre R$ 45 mil e R$ 80 mil, e o aluguel era de cerca de R$ 1.200 mensais.
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Polícia diz que garantirá segurança de obra da prefeitura no Vidigal depois de traficantes expulsarem operários
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