O governador do Rio, Cláudio Castro, e a cúpula da segurança do governo fluminense adotaram uma terminologia particular ao comentar a megaoperação nos complexos do Alemão e da Penha na semana passada, que terminou como a mais letal da História do Rio de Janeiro, com 121 mortos, incluindo quatro policiais. Autoridades repetiram que os alvos da operação eram “narcoterroristas”, equipararam o combate às facções criminosas a uma guerra, e disseram que o assunto era tema da área de defesa, não de segurança pública. Reproduziram o léxico utilizado por líderes da ultradireita global, entre eles os presidentes dos EUA, Donald Trump, de El Salvador, Nayib Bukele, e do Equador, Daniel Noboa, para justificar políticas anticrime — muitas delas criticadas por suprimirem direitos e garantias legais.
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Especialistas ouvidos pelo GLOBO apontaram que a narrativa oficial adotada pelo governo do Rio tem elementos de pautas históricas e agendas atuais de movimentos conservadores. A justificativa por trás da operação, argumentam, é guiado por referências desde o conceito clássico de guerra às drogas — que remonta aos governos dos republicanos Richard Nixon e Ronald Reagan, nos anos 1970 e 1980 — até o movimento atual de equiparação de grupos ligados ao tráfico de drogas e organizações terroristas, que ganhou força com o retorno de Trump à Casa Branca e é apresentado pelo Pentágono como justificativa para as operações militares contra embarcações no Mar do Caribe e no Pacífico.
— Há de comum, nessa direita global, da qual faz parte o bolsonarismo e, portanto, Cláudio Castro, uma visão na área de segurança pública que associa conflitos sociais aos armados, no sentido técnico — apontou o professor de Sociologia Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense. — Nesses casos, a solução [apresentada] é sempre o alargamento das condições de atuação dos agentes públicos, em detrimento das garantias fundamentais e dos direitos individuais. O uso da força letal se torna a regra, não a exceção.
Em uma publicação nas redes sociais enquanto a operação ainda estava em curso, Castro divulgou um vídeo com imagens das ações, incluindo um drone disparando uma bomba contra forças policiais, apontando como prova de que estava diante de “narcoterrorismo“, não de crime comum. O secretário da Polícia Civil, Felipe Curi, repetiu o termo em entrevista coletiva no dia da operação, afirmando que as forças policiais agiram “para capturar ou neutralizar narcoterroristas”.
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Embora o termo não encontre respaldo no ordenamento jurídico brasileiro, que distingue a atividade de organizações criminosas das ameaças terroristas, a linguagem se assemelha à utilizada pelo Pentágono para designar os mortos nos bombardeios às embarcações supostamente usadas por grupos ligados ao narcotráfico — designados por Trump como organizações terroristas. Na sexta-feira, a ONU fez um apelo para os EUA suspenderem os ataques, condenando os incidentes como “execuções extrajudiciais”.
“Se você é um narcoterrorista contrabandeando drogas em nosso hemisfério, nós o trataremos como tratamos a al-Qaeda. Dia ou noite, mapearemos suas redes, rastrearemos seus homens, caçaremos você e o mataremos”, escreveu o secretário de Defesa, Pete Hegseth, ao anunciar o afundamento do 10º barco pelos EUA na semana passada.
A construção do conceito do traficante de drogas como terrorista, segundo a antropóloga Isabela Kalil, professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e coordenadora do Observatório da Extrema Direita, cria, do ponto de vista do reconhecimento público, uma espécie de validação da exceção à lei, numa mensagem de que qualquer método empregado é válido.
— A noção de terrorismo permite colocar em suspensão várias garantias constitucionais e legais. De uma maneira mais direta: a mensagem que fica é que o Estado tem licença para matar — afirmou Kalil. — Do mesmo jeito que, no caso dos EUA, essa adaptação significa que eles podem intervir em outros países, e inclusive passar por cima da soberania nacional, no caso do Brasil, a mensagem é que o Estado pode fazer absolutamente tudo, pois se trata de uma situação excepcional.
O método de enfrentamento do “narcoterrorismo” no Rio também foi abordado por Castro. Em coletivas sucessivas, na terça e na quarta-feira, o governador argumentou que as forças públicas do estado estavam diante de uma “guerra” e sugeriu que mesmo o envolvimento das Forças Armadas seria desejável.
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A combinação do emprego das Forças Armadas e da classificação de ameaças internas como terroristas ganhou tração nesta década, durante o regime de exceção instaurado pelo presidente Bukele em 2022, em El Salvador. A abordagem incluiu uso massivo dos militares, cercos a bairros inteiros e o encarceramento de 1,5% da população. Em contrapartida, o número de homicídios no país, que atingiu um pico de 103 por 100 mil habitantes em 2015, caiu para 1,9 por 100 mil habitantes em 2024 — dado que não inclui mortes decorrentes de confrontos entre policiais e suspeitos ou corpos encontrados em valas comuns, que o governo deixou de divulgar.
— Setores da direita estão muito entusiasmados com algumas experiências internacionais, que são frequentemente repetidas como parte de um receituário — afirmou o cientista político Guilherme Casarões, professor da Florida International University. — A “bukelização” do modelo de segurança tem uma série de controvérsias, a começar pelo fato de ser profundamente autoritária e de partir do pressuposto de que prender inocentes não é um problema, se os culpados também forem presos. É como se a ausência de processo legal fosse apenas um dano colateral.
Em El Salvador, a política teve aprovação popular e entre a classe política, que mudou a Constituição do país para permitir a reeleição — vencida por Bukele, com 85% dos votos. Outras tentativas de aplicação do método, porém, não alcançaram resultados similares. O presidente do Equador, Daniel Noboa, assinou em 2024 um decreto declarando “conflito armado interno”, ordenando as Forças Armadas e a Polícia Nacional a agirem em todo o território do país contra 22 grupos criminosos. Um ano depois, o Equador ainda convive com uma presença massiva de grupos criminosos.
Banalização da exceção
Os especialistas ouvidos pelo GLOBO divergiram sobre a intencionalidade da construção do discurso pelo governo Cláudio Castro. Enquanto alguns apontam indícios de que, enquanto ator político, o governador tinha uma pretensão formulada de pressionar politicamente por um endurecimento do combate ao crime organizado e da exceção de garantias durante operações policiais, outros apontaram certo improviso, repetindo uma linha política estabelecida por outras lideranças partidárias de direita — na semana passada, o senador Flávio Bolsonaro (RJ) defendeu que os Estados Unidos bombardeassem embarcações do Comando Vermelho na Baía de Guanabara, em um indício de alinhamento à pauta internacional.
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Se, do ponto de vista político, o governador conseguiu movimentar atores do Executivo Federal e do Judiciário, a falta de uma coordenação com a legislação brasileira foi apontada pelo advogado Renato Silveira, professor de Direito Penal da USP, como um ponto de atenção para que o combate ao crime organizado atinja os objetivos necessários à sociedade.
— A pretensão do governador precisaria ser mais bem estruturada do ponto de vista legal. Primeiro, para não cair no lugar-comum. Segundo, para não ser banalizada — disse Silveira. — Há uma situação muito séria no Rio, e é preciso ter respostas à altura do que está acontecendo em termos de ocupação [do território, por grupos criminosos]. Mas não se pode simplesmente falar “vamos bombardear”. É preciso, dentro do arcabouço penal, tentar fazer as amarras necessárias para dar essa resposta.
