Henrik Ibsen, dramaturgo norueguês do século XIX, foi um dos primeiros a colocar em cena o conflito entre o indivíduo e a coletividade. Em “Um Inimigo do Povo” (1882), criou um drama sobre coragem moral, manipulação da verdade e a força destrutiva da opinião pública — temas que, mais de um século depois, continuam pulsando com desconfortável atualidade.
Em “Um Julgamento – Depois de Um Inimigo do Povo”, em cartaz no CCBB até 03 de novembro (com ingressos esgotados), essa herança se renova e se expande, transformando-se numa experiência cênica que atravessa fronteiras, linguagens e certezas.
A montagem parte da estrutura original, mas a ressignifica sob um olhar contemporâneo. Se, em Ibsen, o cientista Thomas Stockmann era o homem ético isolado pela sociedade, aqui ele se torna um arquétipo da resistência — e das contradições morais do nosso tempo. O espetáculo traça uma ponte direta entre o século XIX e o presente, em que fake news, descrédito da ciência e colapso das instituições tornam o dilema de Ibsen assustadoramente atual.

A encenação aposta na integração entre teatro e audiovisual. Projeções, câmeras ao vivo e contracenas gravadas em vídeo criam uma dimensão expandida do palco. Os personagens transitam entre o real e o virtual — uma metáfora visual da instabilidade da verdade. Esse diálogo entre linguagens não é um simples recurso estético: ele amplia a dramaturgia e envolve o espectador num campo de incerteza, onde o “real” da cena e o “real” do vídeo se misturam.
Outro ponto alto é o júri formado pelo público. O espectador deixa de ser apenas testemunha e passa a agir como parte do julgamento, interferindo no desfecho. A quebra da quarta parede aqui é mais que simbólica: é um convite à autorreflexão. Se, em Ibsen, a sociedade condenava Stockmann, agora é o público quem precisa encarar sua própria responsabilidade em julgar — um espelho ético e estético do nosso tempo.

A montagem também valoriza a diversidade do elenco e da equipe. Artistas de diferentes países e formações constroem um mosaico polifônico, em que o confronto de culturas e perspectivas se torna parte da própria dramaturgia. O resultado é um “tribunal global”, onde se discutem as fronteiras entre verdade, ética e poder.

Com “Um Julgamento”, o texto de Ibsen ganha nova vida, longe do peso de peça de museu. É teatro como espaço de confronto — e o espectador, cúmplice da trama. Porque, no fim, o que está em jogo não é apenas o destino de um personagem, mas o nosso papel no grande palco da sociedade do espetáculo.
Wagner Moura interpreta Thomas, dirigido por Christiane Jatahy.
Além dos autores, o texto conta com a colaboração do premiado roteirista

, estreitando ainda mais a linguagem da obra da diretora com o audiovisual a partir da dramaturgia. Há os que escrevem histórias. Há os que transformam a vida em narrativa. E Paraíso tira as emoções em todos os lados e conquista espaço com sensibilidade, criatividade e um olhar humano sobre o mundo.
Conversamos sobre arte, afeto e experimentação.
1. O que mais te inspira em parcerias como Wagner Moura? Você pensa no perfil de atuação de cada um?
Escrever esse espetáculo ao lado da Christiane Jatahy e do Wagner Moura foi uma experiência transformadora. Nunca tinha escrito para os palcos e estou muito feliz de estrear com um grupo tão talentoso e inspirador. Sempre admirei a obra da Chris — vi todos os espetáculos dela — e o mesmo vale para o Wagner. São dois artistas que trabalham com propósito, e isso, pra mim, é fundamental. Nesta peça há um grupo de pessoas que respeito, confio e com quem sempre quis trabalhar: além da Chris e do Wagner, o Danilo Grangheia, a Julia Bernat, o Thomas Welgrave, o Paulo Camacho e toda a equipe que, em conjunto, fez esse espetáculo do qual tenho tanto orgulho.
2. No teatro, cada sessão é única. No seu caso, porém, há finais diferentes, dependendo da participação do público. Isso gera mais ansiedade, tensão ou é justamente o que te move?
Ter o público como agente da dramaturgia é uma das bases desse trabalho. Um Julgamento – Depois de Um Inimigo do Povo provoca os espectadores a enfrentarem o dilema que Ibsen apresentou no texto original de 1882, agora atualizado para o nosso tempo. Muita coisa mudou, mas o embate entre ética e capitalismo continua firme e forte. O fato de cada sessão ter um desfecho diferente diz muito sobre o público e seus valores. Isso me intriga — e me move a assistir à peça todos os dias.
3. Você já adaptou obras e também criou histórias do zero. O que muda no seu processo quando o ponto de partida já existe?
Nesse espetáculo, a Chris e o Wagner já tinham o conceito de colocar os personagens de Ibsen dentro de um tribunal. Fiquei maravilhado com essa ideia e desafiado a contribuir trazendo um pouco da dramaturgia do cinema pra narrativa. Trabalhamos o texto como se fosse um filme: fizemos uma escaleta, pensamos nas cenas, escrevemos os diálogos e fomos lapidando tudo nos ensaios. Foi um processo muito colaborativo — e muito feliz.
4. Você foi o idealizador e um dos autores do Microteatro RJ, uma ideia ousada, com pequenos textos encenados em espaços reduzidos. O que mais te encantou em ver o público tão perto dos atores e das histórias que você criou?
O Microteatro nasceu da versão original espanhola, que eu trouxe pro Brasil junto com a Fernanda Bond e a Julia Mariano. Fizemos duas edições, cada uma com um tema. A proposta era criar pequenas peças de até quinze minutos para quinze espectadores — o que chamamos de site specific, ou seja, criadas a partir do espaço. No Rio, foi no Castelinho do Flamengo, que casou perfeitamente com a ideia. O público também fazia parte das “micro obras”. Era possível ver a reação de cada um de pertinho, e isso trazia novidade e frescor a cada apresentação. Nenhuma era igual à outra.
5. Depois de projetos mais densos, dá vontade de escrever algo mais leve — tipo uma comédia ou um romance? Que tipo de dramaturgia tem te chamado mais atenção agora?
Eu me sinto mais à vontade no drama, mas gosto de misturar gêneros. Tento sempre colocar romance, comédia, suspense e até aventura dentro do que escrevo. Na série Os Outros, por exemplo, foi assim: era uma história onde cabiam muitos tons. Gosto quando o público ri, chora, sente medo, se emociona — e, principalmente, quando não tem certezas absolutas. É bom provocar as pessoas a saírem do lugar de conforto.

