À primeira vista, “O Formigueiro”, em cartaz no Teatro Gláucio Gill, em Copacabana, parece um simples retrato de família: três irmãos se reencontram para organizar o almoço de aniversário da mãe, doente de Alzheimer. Conversas, disputas, lembranças. Nada de reviravoltas ou explosões — mas é justamente aí que mora a força do texto de Thiago Marinho. O que parece simples é, na verdade, preciso.
Os diálogos, lapidados com ritmo e escuta, conduzem a trama com naturalidade e tensão crescentes. Os embates verbais são primorosos: não há truques, nem quiproquós de comédia de situação. O conflito nasce das palavras — e, sobretudo, do que elas não dizem abertamente. É um mergulho nas fissuras do afeto familiar, com carpintaria dramatúrgica digna dos grandes textos americanos do século XX, onde o riso vai se estreitando até tocar o drama inevitável.

“O Formigueiro” se move com rara inteligência entre a tragicomédia — onde o riso é porta de entrada para a dor — e o melodrama, entendido aqui como o gênero das emoções intensas, das feridas expostas e dos gestos em busca de perdão.
O elenco de quatro atores — Diego de Abreu, Lucas Drummond, Roberta Brisson e Rodrigo Fagundes — se equilibra com precisão. Sob texto e direção de Thiago Marinho, com supervisão de João Fonseca, ninguém se sobressai, porque todos se escutam. A encenação é delicada e inventiva: a cadeira de rodas coberta por um xale para representar a mãe é de uma sutileza comovente — uma síntese visual perfeita do amor e da ausência.

No fim, é uma peça que aquece o coração e desafia a razão. Fala do que há de mais comum — e, portanto, do que há de mais profundo. Sai-se do teatro com a sensação de ter olhado por dentro da própria casa, da própria família. É arte que parte e volta do humano, cheia de riso e dor, como a vida.
Entre uma apresentação e outra, Rodrigo Fagundes conversou sobre comédia, memórias, dramas domésticos e… os formigueiros da vida.
1 -Depois do sucesso de “Volta por Cima” (iterpretava Gigi, na última novela das sete da TV Globo), agora você mergulha nesse “Formigueiro” cheio de emoção e caos familiar. Dá pra dizer que saiu do palco da novela pro palco da vida real?
Na minha vida, tudo sempre foi misturado — realidade e ficção. Sou noveleiro desde criança e por causa delas imitava os dramas, os gestos, até as mesas de café! Meu pai me dava bronca dizendo que isso era “coisa de mulher”. Vi teatro adulto aos 13 anos, com Renata Sorrah e Thales Pan Chacon. Já fingi desmaio porque a Malu Mader desmaiou em “Anos Dourados”. Cresci numa família mineira que achava que ser ator era passar fome e ser gay. Então, meus amigos eram os personagens das novelas. Tenho fascínio por essa mistura. “O Formigueiro” tem um pouco disso tudo — de Baby Jane e de Glória Pires em “Desejo de Mulher”. Depois da novela, tudo o que eu queria era fazer uma comédia com pitadas de drama. E é exatamente isso.
2 – A peça fala sobre memória, convivência, laços… O que essa história te lembrou sobre as suas próprias relações — e o que preferia esquecer?
A intimidade indecente é a família. A minha era assim: a gente brigava no almoço e jantava junto. Os personagens da peça estão lutando pra ficar no mundo — são sobreviventes. Ninguém é bem-sucedido. A mãe tem Alzheimer, a irmã acha que é rica, o marido é corrupto, o irmão tenta empreender e acaba em crise. Famílias são galhos tortos na mesma árvore, se misturando. E minha relação com meu pai foi difícil.
3 – O público te acha leve, engraçado, mas aqui te vê mais sensível. O humor te ajuda a lidar com a dor — dentro e fora do palco?
Nos piores momentos da vida, o humor sempre veio de voadora. No velório da minha mãe, por exemplo, um passarinho pousou no carro e ninguém queria entrar. Meu irmão achou que era um sinal dela. A minha sobrinha de 7 anos concluiu: “A vovó virou um passarinho!”. O choro e o riso se misturaram — um retrato delicado e cômico do luto. É isso que eu busco no teatro: o drama com riso nervoso, e a comédia com lágrima no canto do olho.
4 – Falando em casa, entre você, seu marido (Wendell Bendelack) e as gatas Ágata e Emily… quem é o mais carente?
A carência é bem dividida! (risos) Quando saímos, as gatas sofrem. O Wendell vive dizendo: “Seja menos carente”. Mas eu gosto de casa cheia, amigos, afeto. Tenho até uma boneca Arabelle da série Conjuring e não tenho medo nenhum — depois daqueles quatro anos de presidência, nada mais me assusta!
5 – Você costuma dizer que as paixões dos gays são a mãe e Nova York. Por que a cidade te atrai tanto?
Por causa dos teatros, claro. Teatro musical é vida! Londres é mais cara. No palco, penso sempre que alguém tirou um pedaço do tempo pra me assistir. Levo isso a sério. A comédia é difícil — muita gente confunde com palhaçada. Quanto mais dramática, melhor: quando o público ri de nervoso, é o ápice. “O Formigueiro” tem essa pegada de teatro “antigo”, no melhor sentido: uma boa história, cheia de família, entreveros, drama e riso. É delicioso de fazer.
Serviço:
Teatro Glaucio Gill (Praça Cardeal Arco Verde, s/n)
Até 27 de outubro, sábados, domingos e segundas, às 20h
Ingressos no site da Funarj.
