Em “Nas Selvas do Brazyl”, o “Z” e o “Y” do título já anunciam o eixo de deslocamento que molda a obra: é o Brasil visto pelo olhar estrangeiro, grafado ao modo de Roosevelt, antes mesmo de a peça começar. Esses dois caracteres abrem a fábula possível do encontro entre Marechal Rondon e o ex-presidente norte-americano no mítico Rio da Dúvida — um Brasil atravessado por enchentes, corredeiras, espantos da mata, embates culturais e silêncios que rugem. A jornada dos dois é, literalmente, uma trajetória em busca de uma dúvida.
Como três troncos que poderiam estar à deriva nas águas caudalosas do rio, aqui os elementos dramatúrgicos — texto, direção e interpretação — se unem pelos fios invisíveis da encenação, formando uma jangada que desce o rio e supera cada obstáculo do percurso.
O cenário-labirinto de fios — emaranhado, suspenso, quase vivo — traduz a complexidade dessa travessia. São fios que delimitam caminhos, confundem, aprisionam e libertam. Ao mesmo tempo instalação, o cenário acumula elementos que evocam cipós, teias, mapas e linhas telegráficas — e que se tornam, de forma sutil, uma chave de leitura da própria selva. Estão ali para lembrar que toda expedição é sempre uma negociação com o desconhecido. É nesse labirinto que Daniel Herz ergue uma direção impecável, inventiva e delicada, conduzindo a narrativa com precisão e fluidez — como quem rege a correnteza de um rio.
No centro da encenação brilham Ísio Ghelman e Gustavo Gasparani. Gustavo funciona como herói mítico ao idealizar o espetáculo. A dupla apresenta um trabalho vocal raro nos palcos atuais: vozes potentes, redondas, harmônicas — sem nunca recorrer ao grito. Mesmo nos momentos de indignação, conflito ou confronto ideológico, mantêm projeção impecável, timbre limpo e palavra nítida.

É a demonstração de que potência vocal não é volume: é domínio, técnica, consciência do espaço, do texto e do outro. O resultado é uma fala que atravessa a sala com força e elegância, sem jamais violentar o ouvido do público.
Essa escolha — somada ao fato de que Ísio não utiliza sotaque para marcar Roosevelt — afasta qualquer caricatura e reforça a inteligência do espetáculo. Roosevelt não é apenas um americano; é a encarnação de um sistema, de um discurso, de uma época. A ausência de sotaque desloca o personagem para o simbólico, o estrutural, o ideológico.
Os figurinos de Wanderley Gomes fogem do óbvio militar, seguindo o mesmo gesto do cenário, também criado por ele. Nada de fardas rígidas ou indumentárias previsíveis. A aposta recai sobre macacões de exploradores, em cores fortes, quase tropicais, que dialogam com a mata, com o risco e com a descoberta. As cores vibrantes criam contrastes visuais que ampliam o caráter de aventura e sugerem o atrito entre civilização e floresta, entre domínio e entrega.

O som — esse “terceiro personagem” — murmura, assusta, embala e convoca. A dramaturgia de Pedro Kosovski costura as camadas: o passado da expedição e o presente dos atores, ambos atravessados pelo colapso ambiental que nos ronda. A floresta emerge como protagonista — não apenas cenário, mas força moral e política.
Amarrado por uma direção firme, um texto pulsante, dois atores em estado de presença e um desenho visual que evita clichês, “Nas Selvas do Brazyl” desce o rio como as grandes travessias: enfrentando riscos, diferenças culturais e perguntas urgentes. A peça retorna ao público como quem retorna de uma expedição — com descobertas, feridas expostas e a sensação de que compreender o Brasil é sempre caminhar por um labirinto vivo.
A conversa com Gustavo Gasparani foi uma lição de brasilidade e de cultura.
1. Como surgiu a ideia do projeto Nas Selvas do Brazyl e qual foi o ponto de partida conceitual que guiou a pesquisa e a encenação?
Em 2016, fazendo uma turnê pelo Norte com o Ricardo III, estávamos em Porto Velho. Me falavam para ver o Museu Rondon e, quando visitei, fiquei encantado com o personagem — um militar pacifista, com uma visão de mundo à frente do seu tempo. Descobri a expedição pelo Rio da Dúvida, em 1914, entre ele e o Roosevelt, e pensei: isso dá uma peça de teatro, dá para falar sobre meio ambiente e colonização. A história ficou na minha cabeça. Não consegui escrever; então chamei o Pedro Kosovski, porque era 2019 e achei que era a cara dele.*
2. Como nasceu sua relação afetiva com a Mangueira e de que maneira o carnaval influencia sua visão de artista?
Sou de uma família de classe média dos anos 70. Era criança e as escolas de samba estavam populares. Lembro de a Mangueira ter sambas muito populares, e minha mãe cantar alguns. Acho que me tornei mangueirense com 9 ou 10 anos, descendo de Petrópolis, dizendo: “não quero descer porque a Mangueira está desfilando”, numa TV preto e branco. Esse é o mistério da minha paixão. Interfere em tudo. Me abriu o universo da cultura afro-brasileira, dos orixás, de outra forma de manifestação cultural. As letras dos sambas-enredo me levaram a outros lugares, muito por causa da Clara Nunes. Eu colecionava, ia a sebos, estudava as letras. A brasilidade da escola de samba é o que me interessa no meu trabalho. A sensação de estar desfilando como passista em “Vou Invadir o Nordeste”, em 2002, me acompanha em cena. Tenho influências estéticas de Fernando Pinto, Rosa Magalhães e Fellini.
3. Você é um dos grandes diretores de musical do país e qual a abordagem do novo, sobre a Fafá de Belém?
Fazer um musical sobre a Fafá de Belém é mais do que fazer sobre uma grande cantora. Ela é um personagem teatralmente interessante. Na década de 70, uma menina fora dos padrões, muito nova, meio gordinha, sai de um estado isolado e, aos 17 anos, vira estrela nacional ao gravar sua primeira música profissional. Mesmo fora do padrão estético, vira símbolo sexual e uma das maiores cantoras do país, porta-voz da cultura amazônica. Sempre foi muito politizada. Conto a história dessa menina do Norte que nunca deixou de ser ela mesma.
4. Ator, diretor, criador, dramaturgo e fundador da Cia dos Atores — como você organiza seu tempo para atuar em tantas frentes?
Uma coisa ajuda a outra. Ser ator me ajuda a dirigir porque compreendo cada etapa. Escrever me ajuda a dirigir porque imagino possibilidades de encenação e depois releio como diretor. Como produtor, posso falar dos assuntos que quero. Estou muito amazônico: com a Fafá de Belém, com o Rondon e o Roosevelt em Nas Selvas do Brazyl*. Depois vem o musical da Globo e o* Vozes Negras*. Tenho ótimas equipes e faço tudo com antecedência.*
5. No processo de construção de “Nas Selvas do Brazyl”, quais foram as descobertas sobre o país — e sobre você mesmo?
Desde o início pensei no Ísio Ghelman. Eu, Ísio e Daniel Herz fizemos faculdade online e dizíamos: temos que trabalhar juntos. Já tinha convidado o Pedro Kosovski; ele topou, mas paramos pela pandemia. Retomamos depois e começamos a desenvolver. O mundo foi ficando oportuno para essa peça. Entrou a linguagem do teatro e a questão dos atores de meia-idade, a partir do nosso convívio e leituras. Mudou em mim a certeza da nossa pequenez diante da natureza e uma reconexão com minha infância no interior, no meio dos bichos. Voltou essa ligação com os animais. Fiquei mais político ao longo do processo. A história da colonização pesou — e falamos disso cada vez mais.
SERVIÇO:
Até 30 de novembro, de quinta a sábado, às 19h; domingos, às 18h
Centro Cutural Banco do Brasil
Ingressos aqui.

