Teatro, por Claudia Chaves: “Gota d’água”

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A música “Gota d’água”, de Chico Buarque e Paulo Pontes, repete o verso “Deixa em paz meu coração” na encenação dirigida por Vinícius Lírio, sem deixar um segundo de paz para a plateia. São 63 minutos de intensidade cênica, com dois atores: um homem e mulher que se digladiam o tempo todo, sem descanso, para exibir o horror do abandono e do desamor.

(Larissa Lacerda/Divulgação)

Vinícius retoma o texto com sua força poética e simbólica que atravessa o tempo, o espaço e os corpos. A Cia. Baiana de Teatro Brasileiro acerta ao manter o texto original, sua métrica, cadência e poesia, sem transformá-lo num musical tradicional. A música aqui é elemento de sublinhado emocional — e nunca de distração estética.

A escolha de usar a canção “Gota d’água” como ponto de ilustração, e não como espetáculo em si, é acertada. Ainda mais forte é o momento em que a protagonista canta “Basta um dia” — a música não só traduz como também condensa todo o espírito de Joana, uma mulher que tenta resistir, mas já se perdeu em suas ruínas internas.

GOTA D_ÁGUA 01 - LARISSA LACERDA
(Larissa Lacerda/Divulgação)
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O elenco enxuto, composto por Evana Jeyssan (Joana), estupenda, e Augusto Nascimento, encontra no minimalismo o máximo de expressão. Os aventais que vestem para mudar de papel são soluções cênicas inteligentes, que não apenas facilitam a multiplicidade de personagens, mas também criam um coral de vozes sociais, como um coro trágico grego de trabalhadores invisíveis e vizinhos murmurantes.

Evana Jeyssan constrói uma Joana dilacerada, sim, mas sem jamais apelar ao dramalhão fácil. É impressionante a personificação do sofrimento: chega a revirar os olhos, dos quais só se vê o branco. É a cegueira do desprezo do qual não se conforma. É uma mulher que sofre por todos os poros, como diz o texto, mas a atriz entrega isso com contenção, dignidade e fúria silenciosa. Uma Joana que não explode — implode. E por isso é tão potente.

GOTA D_ÁGUA 11 - LARISSA LACERDA
(Larissa Lacerda/Divulgação)
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O cenário de Renata Mota, com baldes, cimento, areia e lama, é a metáfora concreta de uma vida que se constrói na precariedade. Não há espaço para romantismo aqui. O amor vira escombro. A vingança — no drama original de Medeia — perde o peso da glória mítica e vira só mais uma derrota de Joana. Mais uma perda. Mais um abandono.

A iluminação de Larissa Lacerda (com design de luz de Victor Alves) favorece a proposta de palco-arena e funciona quase como um terceiro ator — expõe as rachaduras emocionais dos personagens, realça o suor, a pele, a solidão.

A direção musical de Luciano Salvador Bahia sabe a hora de falar e a hora de calar. A trilha se insinua, não se impõe. E essa escolha preserva o impacto do texto, que é, por si só, melodia de dor e resistência.

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GOTA D_ÁGUA 11 - LARISSA LACERDA
(Larissa Lacerda/Divulgação)

Vinícius Lírio conduz tudo com precisão e escuta. Há poesia, sim, mas é uma poesia da terra, do barro, da maré. A tragédia de Joana está entre baldes, feijão no fogo, crianças chorando e sonhos varridos para o canto. O público carioca, diante desta temporada inédita, recebe não só uma obra-prima revisitada, mas também um soco no estômago de todas as injustiças contra as quais só há perda: a cupidez do capitalismo, o amor interessado, o machismo estrutural.

“Gota d’água é, aqui, mais do que teatro: é memória viva. E grita como só os clássicos sabem fazer.

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SERVIÇO:

Arena do SESC Copacabana 

De quinta a sábado às 20h; domingo às 18h

Claudia Chaves
(Arquivo/Arquivo pessoal)



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