“Compliance”, emprestada do inglês to comply, significa obedecer, estar em conformidade. No mundo corporativo, virou sinônimo de integridade — seguir regras, normas e valores éticos. Mas, na prática, o compliance também pode ser uma armadilha: um sistema de vigilância suave, que transforma pessoas em peças ajustáveis de uma engrenagem moral e produtiva.
É justamente esse paradoxo que o diretor e dramaturgo Fernando Ceylão transforma em espetáculo — e o ator Juliano Cazarré encarna com força visceral na peça Compliance, em cartaz no Teatro Prio.
A montagem começa como uma transmissão ao vivo. Fabrício, personagem de Cazarré, fala para o público como se fosse um palestrante de autoajuda: cheio de frases inspiradoras, gestos ensaiados e sorrisos calculados. Vende sucesso, equilíbrio e propósito — a verdadeira utopia da contemporaneidade.
Mas, como a tempestade que começa com uma leve brisa, o discurso se quebra. A confissão e o entusiasmo viram raiva. O homem das regras vira uma tempestade — um sujeito à beira do colapso, esmagado por metas, culpa e medo.

O cenário, dominado por múltiplos ring lights, funciona quase como um personagem. Os objetos, com sua luz intensa, interrogam. Um superego controlador — o chefe, a empresa, o público, a própria consciência. A luz incessante é da ordem da tortura: um foco que chicoteia e cria uma claustrofobia moral. Não há sombras para onde fugir, nem onde se resguardar.
Sozinho no palco, Cazarré está ali de corpo, alma e talento. Atua com o gesto, com o som, com o silêncio. Cria duas vozes que se alternam e se enfrentam: a voz pública, alta e motivacional — imagem do homem bem-sucedido; e a voz interna, rouca, que carrega o peso insuportável da verdade — o medo, o ressentimento, o ódio contido. A performance é tensa, física, quase ritualística. Cazarré prova que o palco é o território ideal para o conflito entre a máscara e a alma.

O texto de Ceylão, conhecido pelo humor ácido e pela comédia inteligente, mergulha agora num drama denso, quase filosófico. Sua virada estética não é apenas de gênero, mas de olhar: onde antes havia riso, agora há silêncio; onde antes havia ironia, agora há dor. Ainda assim, o humor não desaparece — ele ressurge disfarçado, como ironia amarga, mostrando o quanto o riso e o desespero às vezes nascem do mesmo lugar.
Há também um diálogo simbólico com outro papel recente de Cazarré: Jorginho, o ex-chefe de facção de “Três Graças”, que busca redenção pela fé. Tanto Fabrício quanto Jorginho vivem sob mandamentos diferentes — o corporativo e o religioso —, mas a lógica é parecida: ambos tentam obedecer para encontrar sentido. A religião e o compliance prometem salvação, mas exigem submissão.

“Compliance” é, portanto, mais do que uma peça sobre o trabalho: é uma parábola sobre o mundo contemporâneo. Sob a luz impiedosa dos ring lights, Fabrício fala, justifica-se, pede perdão — como qualquer um de nós, tentando se adaptar às regras do jogo. Ceylão transforma o palco em confessionário, e Cazarré, em espelho. No fim, o público sai em silêncio, talvez com a sensação de que também vive sob alguma luz fria, tentando se manter em conformidade.
Conversei com Cazarré:
1. Você tem ou já teve algum mentor na carreira, alguém que te inspirou de verdade nesse caminho das artes?
Tive, sim. Um professor de teatro lá em Brasília que foi a pessoa que mais me inspirou: Hugo Rodas. Ele era uruguaio e morreu há pouco tempo. Hugo foi meu principal mestre — com quem trabalhei, aprendi e fui dirigido no teatro. Aprendi muito com ele sobre a liberdade em cena, a liberdade para evitar clichês. Ele está comigo até hoje.
2. Alguma história de bastidores curiosa dessa peça?
Não sei se tenho alguma história muito curiosa. Foi tudo tranquilo na concepção e nos ensaios — deu tudo certo. O que posso contar é que todas as noites, quando vou fazer o espetáculo, lembro do meu amigo Milhem Cortaz, que me dizia, quando fazíamos “Volta por Cima” (última novela das sete, da TV Globo): “Ju, volta para o teatro, porque lá quem manda é a gente.” No cinema e na TV, há muitas variáveis: a luz, o som, o figurino, o cenário… No teatro, depois que a peça começa, quem manda é o ator. Gosto muito de fazer cinema e televisão, mas o teatro tem algo especial. Não tem ninguém dizendo “ação” ou “corta” — é você e o público. Não pode errar. É muito especial. Acho que no teatro o ator fica mais pleno.
3. Seu novo papel em “Três Graças”, Jorginho, é um chefe de facção que encontra uma nova vida na religião. Quais os pontos de contato entre Jorginho e Fabrício?
Na verdade, o Jorginho não devia cumprir regras da facção, né? Devia ter cumprido as regras da sociedade — não cometer crimes, não ter sido preso. Acho que o Fabrício também é alguém que, conforme a peça avança, o público vai percebendo que foi cometendo erros, fazendo coisas que não devia. O final é trágico. Temos que tentar ser boas pessoas, porque nunca se sabe o resultado das nossas más ações. Elas geralmente nos levam a um lugar não muito bom.
4. Você tem seis filhos (Vicente, Inácio, Gaspar, Maria Madalena, Maria Guilhermina e Estêvão) — um time de vôlei! Dá pra montar uma peça só com o elenco da família Cazarré. Quem seria o diretor?
Com certeza eu e o meu sexteto conseguiríamos montar a peça. A diretora, sem sombra de dúvida, seria a Letícia (Cazarré). As crianças seriam as estrelas, e eu, o coadjuvante.
SERVIÇO:
Até 02 de novembro, sextas e sábados, às 20h; domingos, às 19h
Teatro I💙PRIO (no Jockey Club, Av. Bartolomeu Mitre, 1110B – Leblon)
@complianceteatro
