Esta entrevista foi publicada no GLOBO originalmente em 2021 e reeditada para a edição especial de 100 anos do jornal. Escritora e crítica literária de grande reconhecimento, a canadense Margaret Atwood tornou-se best-seller internacional com o sucesso da adaptação de seu romance “O conto da aia” para a televisão. Veja o que ela disse no encontro com o repórter Ruan de Souza Gabriel.
Embora seja a entrevistada, é Margaret Atwood, autora de “O conto da aia”, quem faz as primeiras perguntas. Quer saber como está o clima em São Paulo e se impressiona ao ouvir que até em dezembro houve dias frios. Diz que no Canadá, sua terra natal, os invernos já não são mais tão rigorosos. Pergunta sobre a pandemia, sobre o andamento da vacinação e sobre os ataques do governo brasileiro aos povos indígenas. Atwood, porém, também opina. Fala sobre aborto, sobre a adaptação de sua obra mais célebre para o streaming, sobre a polarização do debate público, sobre viagens a Marte e sobre robôs sexuais. A autora, que participou da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) em 2022, se define como uma “escritora bocuda”.
No mesmo ano, a Rocco publicou dois livros seus no Brasil: a antologia de contos “Colchão de pedra” e o romance “O coração é o último a morrer”, que acompanha um casal falido que topa trabalhar (e morar!) num presídio privatizado e se envolve com robôs sexuais. Lançado em 2015, o romance é mais uma das distopias de Atwood. A seguir, confira o que ela disse ao GLOBO.
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De todas as discussões contemporâneas sobre ética sexual, por que incluiu o debate sobre robôs em “O coração é o último a morrer”?
Porque a história pedia (risos). Os robôs sexuais avançaram muito. São um daqueles temas sobre os quais há posições extremas contra e a favor e quase nenhum meio-termo. Quando somos crianças, existem o bem e o mal, e nada no meio. Na vida real não é assim. Os robôs sexuais são tão perturbadores porque são quase humanos, mas não são humanos.
No ano passado, você assinou um manifesto contra a cultura do cancelamento e foi duramente criticada…
Isso tem se repetido ao longo da minha vida. É o que acontece quando você tem uma opinião. O problema é o que eu chamo de “pensar em duas caixas”. É como se só houvesse duas caixas onde deveríamos encaixar tudo. Não é assim que a natureza funciona. Pense nisso.
Você já disse que não gosta da expressão “intelectual público” e prefere ser uma “escritora bocuda”. Por quê?
A maioria das pessoas não pode expressar publicamente suas opiniões por medo de perder o emprego. Não tenho obrigação de opinar, mas decidi fazer isso. Tenho falado sobre a crise climática, que precisamos resolver ou não continuaremos no planeta por muito tempo.
A série “O conto da aia” tornou sua obra mais popular. Aumentou a pressão para que se manifeste ou recebe mais críticas às suas opiniões?
Quanto mais proeminente você fica, mais será atacado. Em 1972, eu tinha feito algum sucesso com um livro e um escritor me disse: “Agora você é um alvo e vão atirar em você”. Ele acertou! Digo a jovens escritores: “Se o seu livro for um best-seller, em um ano ao menos três pessoas que você não conhece vão atacá-la pessoalmente. Prepare-se!” Isso acontece especialmente com jovens mulheres.
O hábito das aias virou uniforme de protestos feministas. Você mesma participou da luta das argentinas pelo aborto. Como se sente quando sua obra inspira os leitores à ação política?
Me envolvi na luta argentina pelo aborto a pedido do movimento Ni Una Menos, que denuncia os feminicídios. Para mim, a questão é simples: o Estado é dono dos nossos corpos? Quando você é obrigado a servir ao Exército, o Estado é dono do seu corpo e deve pagar por suas roupas, comida, moradia, despesas médicas etc. Se o Estado quer ser dono dos corpos das mulheres, que pague por isso. Limitar o aborto a casos específicos é assassinato judicial.
Na Flip, você disse que a sabedoria indígena pode nos ajudar a superar a crise climática.
O pensamento indígena me interessa há muito tempo. Eles podem nos ensinar como impedir que nossas utopias igualitárias se tornem ditaduras. Várias sociedades indígenas têm arranjos sociais igualitários em que as habilidades individuais também são premiadas.
O que você gosta de ler?
Tudo! Cresci sem televisão, rádio, telefone e eletricidade. Tudo o que eu fazia era ler, escrever e desenhar. Leio até revista de companhia aérea, caixa de cereal, rótulo de vinho. Aliás, rótulos de vinho são muito poéticos (risos)! Ultimamente, ando interessada por livros sobre História e a crise climática. Tenho estantes só com livros sobre a peste negra, julgamentos de bruxaria, folclore, história militar e feminismo. Meus interesses são muito diversos. Só não me interesso por astrofísica. Não tenho vontade de ir para Marte.
Lançado em 1985, “O conto da aia” chegou à TV em 2017. Por isso, quando participou da Flip pela primeira vez, em 2004, Atwood circulou tranquilamente por Paraty. Anos depois, ela voltou à festa, mas de maneira remota. Como tantos outros eventos, a Flip foi realizada à distância durante a pandemia de Covid-19. Mas Atwood já estava em outro patamar, e aproveitou sua nova fama para falar abertamente sobre temas que a mobilizam, como a crise climática e o feminismo. Hoje, com o fim da série “O conto da aia”, que foi além de sua obra, a escritora é constantemente convocada para dar sua opinião sobre temas contemporâneos — como faz nesta entrevista publicada em 2021.