Mac Laine, hoje com 46 anos, tinha apenas 16 em outubro de 1994, quando perdeu o único irmão, Macmiller Faria Neves, na época com 17, vítima de uma chacina na favela Nova Brasília, no Complexo do Alemão. Durante a operação policial, morreram 13 jovens, sendo que outros três eram adolescentes como ele. Três anos antes a vendedora havia perdido a mãe, e o pai saiu de casa. O irmão era seu único esteio, e a morte dele a fez se sentir desamparada pela primeira vez. O amparo também não veio da Justiça, que 27 anos depois, em 2021, absolveu todos os envolvidos nas mortes por falta de provas. Agora, a recente aprovação pela Assembleia Legislativa de um bônus que recria a chamada “gratificação faroeste” traz de volta antigos fantasmas.
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— Eu era uma criança com 12 anos de idade quando enterrei minha mãe. Meu único apoio foi meu irmão. Só ele conhecia a dor que eu estava sentindo. Ele era a única pessoa no mundo que estava sentindo a mesma dor que eu. Imagina como foi depois enterrar ele. Éramos o apoio um do outro. Eu morri ali junto com ele — diz Mac Laine, que perdeu a mãe vítima de um AVC, ao relembrar como aquela execução mudou sua vida.
O nome do rapaz está na lista das 259 pessoas que morreram sem que tivessem qualquer tipo de antecedente criminal, publicada em julho de 1999 na série de reportagem do jornal Extra intitulada “A cova dos Josés”, sobre vítimas da polícia naquela década, quando vigorou, pela primeira vez, a chamada “gratificação faroeste”. Mac Laine diz que nos últimos 30 anos apenas sobrevive, tentando entender o luto pelo irmão. O da mãe, afirma ter processado, ao compreender que a morte dela foi decorrente de uma doença, enquanto a vida do rapaz foi interrompida por uma execução, da qual tomou conhecimento pela televisão, enquanto tomava o café da manhã.
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—Comecei a ficar nervosa, minha vontade era ir para a Nova Brasília. Lembro que peguei um ônibus e, quando passou um rabecão, senti que o corpo dele poderia estar ali. Então desci, mas não lembro de mais nada. Fiquei com apagões de memória depois disso. Tenho flashes, não consigo me lembrar de muita coisa. Só lembro que desci do ônibus, mas não para onde fui ou o que fiz. Só lembro quando, mais tarde, minha avó confirmou a notícia de que era ele mesmo. Estava bebendo água, joguei o copo na parede e não lembro de mais nada — afirma Mac Laine, que não conseguiu ir ao enterro do irmão.
Ela conta que o irmão tinha ido a um baile e voltou com a namorada, que também foi morta numa das casas invadidas pelos policiais. A vendedora admite que o rapaz estava caminhando para o que chamou de “vida errada”, mas acha que isso não justifica a sua execução. A autópsia feita na época indicou que o jovem morreu com quatro tiros: um na parte de trás da cabeça, um na região temporal esquerda, um no rosto e outro no ombro.
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—A forma como executaram ele foi absurda. Não foi de longa distância e não foi em troca de tiros. Meu irmão foi morto dentro de casa, abaixado perto de um armário. Ele não resistiu à prisão nem trocou tiro. Por que não prenderam ele? Hoje ele teria pagado a pena, se estivesse errado, e teria refeito a vida dele. Mas não teve essa oportunidade de mudar a história dele. Isso diz muito sobre a gratificação faroeste. O que mudou de lá para cá? Fizeram essa chacina e teve outras execuções e nada melhorou. Adiantou alguma coisa? A saída não é gratificar policial que executa. Essa política não é a solução. Se não deu certo nos anos 90, por que vai dar agora? — indaga.
Para a vendedora, a solução real para o problema seria dar oportunidades aos jovens em vulnerabilidade social que vivem nas favelas. Ela acha, inclusive, que os recursos para pagamentos desses bônus deveriam ser redirecionado para projetos que representem verdadeiramente uma oportunidade de mudança de vida para crianças e jovens de comunidade.
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—O dinheiro que é gasto para bonificar (policiais que matam) devia ser usado para criar oportunidades para os jovens — sugere, dando como exemplo de iniciativa bem-sucedida a do Camp Mangueira, que capacita jovens por meio de programas de aprendizagem, estágio e inclusão social, conectando talentos com o mercado de trabalho.
Desde a morte do irmão sua vida se transformou, a começar pela mudança de casa. Ela foi morar com a avó materna em outro lugar. O episódio também a afastou ainda mais do pai, que também não conseguiu até hoje se recuperar da perda precoce do filho.
—Carrego traumas e dores até hoje. Piora mais ainda pelo fato de na época eu ser uma adolescente que não sabia nada da vida e nem conhecia meus direitos. Por conta disso não tive nenhum atendimento ou apoio psicológico. Tive de aprender a lidar com minha dor mascarando ela, jogando para debaixo do tapete e fingindo que estava tudo bem— revela a mulher, que se tornou uma mãe superprotetora.
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O sonho de Macmiller, segundo a irmã, era ser fuzileiro naval, como um dos tios. Ela acredita que esse poderia ter sido um caminho trilhado pelo jovem se ele tivesse tido uma segunda chance:
—Ele não perdeu só a vida. Perdeu a história dele. Ele não formou família, nem realizou sonhos.
Ultimamente Mac Laine se dedica à criação de um coletivo de familiares das vítimas, com página na internet, para evitar que esse e outros casos de violência policial caiam no esquecimento. Sobre a ‘gratificação faroeste’, torce para que o bom senso prevaleça e a medida seja vetada pelo governo, o que deve acontecer, como declarou Cláudio Castro nesta segunda-feira.
— Qualquer política que incentive a letalidade é um retrocesso — conclui.
Mais de 80 policiais civis e militares participara da ação na Nova Brasília. Na época, os agentes foram acusados de matar pessoas desarmadas. Sete meses depois, em 1995, um outra execução, também em operação policial, se repetiu na mesma comunidade, com a mesma quantidade de vítimas.
Na ocasião, a versão oficial dizia que as vítimas tinham sido mortas durante troca de tiros entre policiais e traficantes. Porém, laudos médicos apontavam que vários corpos tinham sinais de execução, com tiros dados a curta distância. Em 2009, o caso de 1994 prescreveu, e o Ministério Público arquivou as investigações. O inquérito só foi reaberto em 2013.
Mai tarde, em 2017, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o estado brasileiro por violação das garantias e proteção judiciais, pela falta de investigação, e por violar a integridade pessoal dos familiares das vítimas da Nova Brasília. Mesmo após essa condenação, em 2021, cinco policiais foram absolvidos pelo Tribunal do Júri depois de serem julgados pelos homicídios qualificados das 13 pessoas, em 1994.