No meio do primeiro episódio de “Dias perfeitos”, eu me perguntei “por que estou vendo essa série?’’. De início, rolou um desconforto. Mas eu sabia do sucesso da trama. O livro de Raphael Montes que dá origem à produção do Globoplay virou best-seller, foi traduzido em diversos países. Se tanta gente se interessa, quero entender o que há de mais atraente ali. E não demorou para eu ser arrebatada pela trajetória do obsessivo Téo (Jaffar Bambirra) e da jovem Clarice (Julia Dalavia).
É desconcertante me ver absorvida pela história de um estudante de Medicina que, alucinado e rejeitado por uma garota após um selinho, sequestra a moça numa mala e dá início a uma convivência marcada por violência física e psicológica. E não estou sozinha na multidão. Se os conflitos de “Dias perfeitos” transpuseram fronteiras territoriais, atraindo leitores de diferentes idiomas — e agora de linguagem, migrando das páginas para as telas —, é porque questões enfocadas ali são universais. E podem ser só os absurdos de um competente thriller de terror ou de um suspense bem construído, gêneros que têm fãs cativos. Mas por mais perturbador que seja, no fundo acho que tem também um grau de realidade ali que nos aflige ao constatarmos: “conheço um fulano que, se bobear, é capaz de chegar nesse ponto aí” ou “o enredo desses dois é parecido com aquele que ouvi falar”.
O noticiário confirma, com histórias passionais e seus roteiros que terminam em tragédia. Num caso recente, o rapaz se candidatou à vaga de porteiro no prédio da ex. Conseguiu o emprego e matou a moça a facadas no dia do aniversário dela, na frente da filha. Infelizmente, acontece. E até por isso, enquanto assisto, por mais que incomode, vou constatando que pode ser real o que me parece surreal.
Para além desses questionamentos que toda boa obra provoca, personagens desenvolvidos com profundidade fazem toda a diferença pra que a gente se deixe envolver por uma história. Téo acredita viver a vida pela metade. Encara a responsabilidade de cuidar da mãe paraplégica (Patrícia, vivida por Debora Bloch) como um fardo, e esse é um ingrediente muito bem apresentado em um dos episódios, quando ele conta que tudo teria sido causado pelo próprio pai, num acidente de carro proposital. O personagem explana isso, usando, portanto, uma ótima justificativa para atos injustificáveis.
Vale ressaltar a atuação impecável de Jaffar Bambirra, que já mostrou seu trabalho em novelas como “Mania de você’’ e “Pega pega’’, mas que na série confirma ser um dos destaques da nova safra de atores. A variação de seus trejeitos como um psicopata é afiada. E não falo só de momentos clímax na história. Mas de cenas aparentemente corriqueiras, como quando ele dirige o carro a caminho da Região Serrana, com Clarice dopada ao seu lado, ao som de “Sonhos”, composição de Peninha, tocando no rádio. O sorriso e a satisfação de Téo manifestados nessa sequência são repugnantes. Uma interpretação que impacta o público, como só os grandes sabem fazer. A decisão de também mostrar o ponto de vista de Clarice em relação aos fatos, diferentemente da obra literária que só traz o olhar de Téo, foi uma sacada certeira para aguçar reflexões no público.
Os últimos dos oito episódios de “Dias perfeitos”, projeto dirigido por Joana Jabace, foram disponibilizados nesta semana no Globoplay e já se sabe: o final é diferente da história do livro. Dá pra passar nervoso, mas vale conferir.
Gabriela Germano é editora-assistente e atua na área de cultura e entretenimento desde 2002. É pós-graduada em Jornalismo Cultural pela Uerj e graduada pela Unesp. Sugestões de temas e opiniões são bem-vindas. Instagram: @gabigermano E-mail: gabriela.germano@extra.inf.br
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Por que 'Dias perfeitos' é desconcertante, mas irresistível

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