Os crime de responsabilidade (por Pedro Costa)

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1 de 1 Megaoperação no Rio de Janeiro. Moradores empilham e fazem contagem de corpos após operação da polícia contra o CV no Rio de Janeiro - Foto: Tercio Teixeira/Especial Metrópoles


A mídia tem esclarecido muito a população sobre a grande tragédia que se abateu sobre o Rio de Janeiro. Para isso ela ouve os dois lados, no seu twosidism militante, isto é, equipara o terraplanista e Galileo Galilei, o criacionista e Darwin. E faz pesquisas de opinião. Como as perguntas induzem a aprovar a barbaridade, a mídia se adapta a isto. Mas algumas delas são uma concessão pública, e todas devem ter responsabilidade e compromisso com a sociedade. Deveriam agir como François Miterrand, na campanha eleitoral de 1981, que enfrentou a opinião majoritária dos franceses e se declarou contra a pena de morte; 6 meses depois seu garde des sceaux, Robert Badinter — que acaba de entrar para o Panthéon por sua coragem em defesa dos direitos humanos —, conseguia a lei que consagrou a extinção da pena. Diante das garantias constitucionais — em cláusulas pétreas —, fazer pesquisas sobre esses direitos só faz sentido para fins políticos. E a política não deve existir fora da ética.

Os números são uma ferramenta que pode ser manipulada facilmente para criar a mentira, mas pode também revelar a verdade. Vamos aos números de verdade. No ano passado, 14% das mortes violentas intencionais no Brasil foram produzidas pelas polícias: 6.243. Nossos “homens da lei” matam 8 vezes mais que os americanos, 56 vezes mais que os franceses. Conseguimos ser mais brutais que os brutais americanos. Quanto ao risco elevado que correm, que faz com que se lute para aumentar a proteção ao policial, houve 43 vítimas. Para cada policial morto, 145 pessoas. Mais do que usou o governo de Israel, que matou cerca de 35 palestinos para cada vítima do Hamas.

Qual o propósito da operação? Pode ser algum ou vários destes: a) é preciso esconder a distribuição de dinheiro público na véspera da última eleição e barrar o julgamento no TSE; b) é preciso esconder as acusações de corrupção; c) é preciso evitar que os bandidos do CV derrotem as milícias que ocupam a Zona Oeste do Rio; d) é preciso mostrar serviço para o bolsonarismo; e) é preciso contribuir para a fantasia da intervenção americana.

Intervenção americana? Que maluquice é essa agora? Pois é! O primeiro lance é o do senador 01, que apela ao Secretário de Defesa americano — aquele que tem idiota gravado na testa — para bombardear os barcos dos “narcoterroristas” na Baía de Guanabara. Imediatamente se conseguiu uma urgência na Câmara de Vereadores — oops! — dos Deputados para transformar os narcotraficantes em “narcoterroristas”, o chefe da polícia-bandida de São Paulo deixou o cargo para ser seu relator — nenhum outro deputado seria capaz de fazer seu trabalho?! — e o chefe da quadrilha no Rio ordenou a chacina. Agora já há troca de correspondência com autoridades (?) americanas. É bom lembrar que isso é crime (Art. 359-I do Código Penal) e viola a Constituição (Art. 21, I e Art. 84, VII) — mais três motivos para que o governador aterrorizador seja processado (se fosse na França dava prisão perpétua).

Pois vamos e venhamos: operação policial se faz para evitar crime, prender pessoas etc. Desocupar uma área tomada por bandidos — pressupõe-se que a operação policial para evitar que a área fosse tomada não aconteceu ou acontece — é algo que se faz paulatinamente, com o apoio de serviços sociais e, no caso, dentro das regras da ADPF 635. É claro que o objetivo não era desocupar a área, para o que bastaria empurrar os criminosos para fora dos bairros e deixá-los fugir. Não era fazer uma operação segura, pois esta teria que ser feita de dia, lentamente, para que não houvesse confusão com quem não era bandido. Não era uma operação inteligente, pois não se sabia — ou não se quis usar a informação, se a tinham — onde estavam os criminosos que estariam sendo buscados; segundo informa a declaração de sucesso, nenhum deles foi preso, será que o combinado era deixá-los escapar?

Era uma operação para matar. E os mortos foram os que calharam. Nem armas a metade deles tinha: foram 117 mortos e 123 presos, 240 pessoas, oficialmente bandidos, pois é bandido quem a polícia diz que é. As armas apreendidas foram 118. A “exclusão de ilicitude presumida” de quem mata duas pessoas porque uma está com uma arma é a mais nova garantia da polícia-bandida.

A operação, que já se pretende capaz de eleger presidente da República o Castrotrofe e até senador o chefe da “operação”, não tomou, é claro, nenhum cuidado com evidências. As novas regras são:  não isolar cena de crime para bandido morto; prender quem filma a ação — será que tinham algo a esconder?; não esperar a perícia para a remoção do morto; separar a cabeça do corpo do morto — ou a pessoa estava viva?; impedir que uma testemunha idônea acompanhe a autópsia. Matar, matar!

Que importa se o artigo 5º da Constituição veda: tortura (III), de que há vários relatos e sinais; tribunal de exceção(XXXVII), pois as pessoas foram ali mesmo julgadas e condenadas à morte; pena de morte (XLVII); e várias outras coisas? Que importa se o Estado, e o Estado de Direito, existem justamente para garantir o direito à vida? Que importa se é para isso que o Estado tem o monopólio da força — claro que do uso legítimo da força?

Não se pode acusar os matadores e sobretudo seu chefe de falta de imaginação. Ele cometeu certamente crimes de responsabilidade (Lei 1.079/50, vários incisos do art. 7º). Mas criou a necessidade de uma lei para os crimes de irresponsabilidade, em que o que se pretende é fugir da Justiça, é se livrar de ter passado a mão no dinheiro público, é matar para se auto-indultar etc.

A violência serve para desqualificar. Desqualifica quem a aplica. Serve para qualificar. Qualifica a vítima. Vítimas de violência, de certa maneira, somos todos nós, obrigados a comportamentos que não teríamos espontaneamente, como trancar a porta de casa. Mas há as vítimas de violência que são mortas porque há clamor da multidão, como um certo carpinteiro de Nazaré. As que, como Ele, são filhos do homem, têm quem os ama e quem é por eles amado. As que, a esta hora, têm os que por elas choram.

 

Pedro Costa, arquiteto e Escritor.



Com informações da fonte
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/os-crime-de-responsabilidade-por-pedro-costa

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