A divulgação dos vídeos de câmeras corporais que flagraram oito agentes da tropa de elite da Polícia Militar furtando pertences em uma casa no Complexo do Alemão, em janeiro, gerou uma onda de repúdio e forte mobilização das comissões de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ), da Assembleia Legislativa (Alerj) e da Câmara dos Deputados. O caso foi publicado no Blog do Ullisses Campbell, do GLOBO. As entidades apontam que a cena, na qual PMs aparecem debochando enquanto se apossam de roupas de grife, perfumes e caixas de som de moradores, expõe, segundo os advogados e coordenadores das comissões, “uma grave cultura de impunidade e a desumanização dos moradores de favela”. O principal alvo das críticas é a lentidão na apuração do caso, que, passados oito meses, ainda não resultou em denúncia formal à Justiça.
- MPF aponta três inconstitucionalidades em ‘gratificação faroeste’ aprovada pela Alerj
- ‘Gratificação faroeste’: Alerj aprova bônus por ‘matar’ criminosos quando Rio tem menor índice de mortes pela polícia em dez anos
O crime ocorreu em 15 de janeiro, mas o inquérito do caso foi encaminhado ao Ministério Público do Rio de Janeiro em 1º de setembro. A 2ª Promotoria de Justiça junto à Auditoria da Justiça Militar confirmou que o Inquérito Policial Militar (IPM) ainda está sob análise.
No entanto, ao ser questionada pelo GLOBO, a PM não respondeu porque demorou quase oito meses para encaminhar o inquérito ao órgão competente.
Câmera corporal flagra PMs furtando itens de casa em comunidade
O órgão explicou que, após receber o inquérito, o MP tem um prazo de 15 dias para denunciar ou pedir novas diligências.
A investigação da PM identificou e ouviu oito agentes que apareceram dentro da residência. Todos os flagrantes só existem porque um dos cabos do Bope presentes na incursão, Leandro Silva Pereira dos Santos, responsável pela câmera, aparentemente esqueceu de desligar o equipamento.
A Promotoria esclareceu ainda que está “verificando se todos os elementos necessários para a formação de opinião estão presentes”. Somente após essa análise o MPRJ poderá oferecer a denúncia, pedir diligências complementares ou, por fim, arquivar o procedimento. O órgão ainda mencionou que o sigilo é decretado para preservar o sucesso da investigação.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/M/H/NknjBURGSCf4otcZ46cg/whatsapp-image-2025-09-30-at-00.13.44.jpeg)
Para o advogado Rodrigo Mondego, coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, o episódio expõe uma lógica de impunidade:
— Quando a gente tem uma polícia que é legitimada, inclusive para matar, qualquer outro crime se torna trivial. A gente tem, no Rio de Janeiro, uma das polícias que mais matam no mundo. Quando a polícia pode matar, ela se sente à vontade também para roubar tudo que essa pessoa tem.
Segundo Mondego, os vídeos reforçam a rejeição de parte da corporação ao uso de câmeras corporais: — Só quem tem medo de câmera corporal são os maus policiais. Ele afirmou que a comissão vai oficiar órgãos competentes, em especial o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ), responsável por fiscalizar a atividade policial.
A advogada Mariana Rodrigues, coordenadora da Comissão Popular de Direitos Humanos do Rio de Janeiro (CPDH), expressou surpresa com o respaldo institucional percebido na conduta dos agentes.
— Para gente que é movimento social enquanto advocacia popular não nos espanta esse tipo de operação e esse tipo de ação. Já vimos isso acontecer antes. O que mais me espanta é como a cadeia de comando legitima esse tipo de atitude. Os agentes agem com tanta tranquilidade, fazendo ironias e debochando da situação com os colegas, na frente das câmeras. Isso é a certeza da falta de gerência sobre o comando e de impunidade. É estarrecedor — afirmou a advogada ao pontuar a certeza da impunidade:
— Quando acontece alguma crise, imediatamente as autoridades vão a público falar que foi dano colateral da operação policial necessária. E isso é muito rápido. Precisamos também na mesma rapidez uma resposta quando os agentes cometem crimes.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/8/0/LurKXMTGmfKTkyZmnVTA/dsadaaddasddsadadsadsadsdsad.jpg)
A análise das comissões é unânime ao apontar que o furto é facilitado pela visão de que a população favelada não tem direito a bens de consumo.
— Existe uma desumanização de pessoas que moram no território de favela, né? Então essa pessoa pode ser morta, essa pessoa pode ser roubada, essa pessoa não pode ter uma roupa um pouco melhor, ela não pode comprar uma caixinha de som de uma marca mais famosa, né? Porque se ela tiver esses bens, que ela não deve ter direito, porque ela é desumanizada, ela tem que ser roubada, né? — afirmou Mondego.
- ‘Se estivesse de viatura, levava a JBL’: câmera corporal flagra PMs do Bope furtando casa durante operação no Rio; veja
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB Rio, Sidney Guerra, reforçou a necessidade de uma “tríplice responsabilização”.
— Os agentes que praticaram esse ato devem ser responsabilizados na espera criminal, administrativa e civil. É a tríplice responsabilização. Na esfera criminal por conta dos crimes cometidos e gravados. Na esfera administrativa porque são agentes do estado. Eles podem, inclusive, perder o posto da graduação e uma possível ação de responsabilidade civil praticada em face do estado.
Demora na análise do processo
O fato de o inquérito (IPM) ter se arrastado por oito meses sem desfecho foi um dos pontos mais criticados.
— Um episódio dessa magnitude que aconteceu em janeiro e se arrasta por oito ou nove meses não me parece correto. Tem que entender quais medidas a polícia militar adotou em fase desse processo que teria começado — disse Guerra.
A deputada Dani Monteiro, presidenta da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Alerj, cobrou rigor imediato:
— O povo de favela tem direito à sua dignidade, o que inclui poder manter e usufruir dos seus bens sem que o Estado, que deveria protegê-los, viole esse direito. Esse caso precisa ser rigorosamente apurado, inclusive pela Corregedoria, e a Comissão acompanhará de perto o desenrolar das investigações para que não reste impunidade.
Em nota, a Secretaria de Polícia Militar informou que a investigação foi concluída pela Corregedoria e remetida ao Ministério Público, e que os agentes estão afastados das atividades externas, cumprindo funções administrativas.
O caso dos agentes do Bope não é isolado. Em 2022, um morador da Vila Aliança, comunidade que fica na Zona Oeste do Rio, flagrou PMs em serviço invadindo sua casa e mexendo em seus bens. Segundo ele, os militares furtaram uma caixa de som, um vidro de perfume, um quilo de carne congelada e oito caixinhas de água de coco — e toda a ação foi gravada. O proprietário decidiu instalar um circuito de segurança com transmissão em tempo real depois que, segundo ele, sua casa foi revirada por PMs em outras 10 ocasiões.
Na época, enquanto a PM fazia uma operação na comunidade, o morador, que não estava em casa, acompanhou por um aplicativo os PMs mexendo em seus pertences. O dono da casa afirma que os PMs não tinham mandado de busca ou qualquer flagrante que justificassem a entrada. As imagens mostram dois policiais militares do Batalhão de Choque com fuzis mexendo nos bens da família. Um deles se impressiona com uma garrafa de uísque. “É Black Label?!”, indagou.
Depois, um agente mexe em uma caixa onde estavam guardados jogos de videogame. “Ó, cheio de jogo maneiro. Só que é Xbox”, desdenhou.
Questionada sobre os policiais envolvidos na ação de 2022, a Polícia Militar não respondeu sobre o que aconteceu com os agentes envolvidos na denúncia. Na época, a corporação chegou a dizer que eles foram identificados e afastados das funções e passaram por Conselho Disciplinar da PM.