moradores da Penha e do Alemão contam como é viver numa área dominada pelo tráfico

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Triste realidade. Carcaça de carro queimado reforça o bloqueio na rua. Três dias depois da megaoperação nos complexos do Alemão e da Penha, barricadas na Vila Cruzeiro mostram que o ir e vir na comunidade segue controlado pelo tráfico — Foto: Fabiano Rocha


As carcaças de automóveis, barras de ferros, montanhas de pneus e até mesmo de móveis velhos usados como barricadas para fechar algumas vias de acesso à Vila Cruzeiro, na Zona Norte, são sinais visíveis de que se está chegando a uma zona conflagrada. Na Avenida Brás de Pina, fora da favela, um cartaz pendurado na fachada de um comércio fechado exibe a palavra “paz”, enquanto a população tenta manter uma rotina normal, cinco dias depois da operação que deixou 121 mortos e um rastro de medo na região.

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Rotina alterada. Na entrada da Vila Cruzeiro, faixas de “Paz” na fachada do comércio fechado são o retrato de uma comunidade que ainda não voltou ao normal — Foto: Fabiano Rocha

Na Mata da Vacaria, localidade da Serra da Misericórdia, no Complexo da Penha, onde na quarta-feira, dia seguinte à Operação Contenção, foram encontrados mais de 60 corpos, o “cheiro é de morte”, segundo a tia de um dos que morreu na megaoperação.

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Os complexos da Penha — onde fica a Vila Cruzeiro — e do Alemão, dominados pelo Comando Vermelho (CV), abrigam cerca de 110 mil moradores, segundo dados oficiais. Por trás das barreiras estão 41 escolas municipais, quatro estaduais e oito unidades de saúde.

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Os moradores têm suas vidas impactadas pela violência cotidianamente, que os obriga a adotar códigos próprios de conduta e mudanças nas rotinas mais simples, como o ato de comprar o pão e o leite. Essas pessoas vivem entre o jugo do crime e o risco dos confrontos com a polícia.

Além das barricadas, a vida nestas comunidades é controlada por câmeras do tráfico e até drones, como mostra a denúncia do Ministério Público. Os traficantes recorrem a esses mecanismos tanto para tomar conta do território como para fiscalizar as movimentações, como o posicionamento de viaturas policiais.

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Segundo a Polícia, Juan Breno Malta Ramos, o BMW, gerente do tráfico na Gardênia Azul, na Baixada de Jacarepaguá, é quem controla as câmeras de segurança dentro do Complexo da Penha, monitorando, por exemplo, a chegada dos agentes. Amedrontados, os moradores evitam falar sobre determinados temas. Mas o silêncio revela mais do que esconde: o medo.

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Uma moradora do Complexo da Penha, que preferiu não se identificar, diz que as regras de conduta na comunidade vão desde a obediência ao toque de recolher, principalmente em dias de operação, até evitar fazer sinais específicos com as mãos, como, por exemplo, exibir três dedos em fotos postadas nas redes sociais. O sinal é visto como afronta nas comunidades controladas pelo CV, já que remeteria ao Terceiro Comando Puro (TCP), facção rival. A desobediência pode resultar em punição.

— Quem mora aqui sabe que tem regra — afirma a moradora.

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Outra moradora, esta do Alemão, de 65 anos, conta que viver na comunidade é ter a sensação de que a qualquer momento algo de ruim pode acontecer. O medo fez com que ela alterasse a rotina de visitas à padaria. Só vai à noite, para garantir o pão e o leite do dia seguinte.

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—É apavorante porque você espera todo dia acontecer alguma coisa de ruim. Se der um tiro ou se alguém soltar fogos, a gente já fica apavorado. Estamos traumatizados. A gente tem que comprar pão e leite de noite porque não sabe nunca como vai ser o clima no dia seguinte — relata ela, que vive há nove anos numa casa perto da Estação Palmeiras do teleférico e de cuja janela consegue ver a pedreira na Vacaria.

—A gente vive num lugar onde vê o que não quer a todo momento — desabafa.

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A moradora conta que na terça-feira, quando aconteceu a operação classificada como a mais letal da história, não conseguiu sair para trabalhar. Presa em casa, tendo como companheira apenas uma cadela, precisou tomar dois calmantes e dois ansiolíticos para suportar a tensão.

Outra moradora do Alemão, uma mulher de 47 anos, diz que nos dias normais não vive sob o medo. Porém, admite que o clima é de constante apreensão, por saber que a tranquilidade pode desaparecer de uma hora para outra. Ela conta que os grupos de WhatsApp criados pelos moradores funcionam como uma espécie de rede de proteção e informação:

—A gente tenta levar uma vida normal de casa, trabalho, família e festinha, mas sempre atento e esperando o próximo amanhecer.

Barulho é sinônimo de paz

Mãe de um jovem negro de 22 anos, sua maior preocupação é com o filho. Ela criou um código de conduta próprio para defendê-lo quando sai de casa. Recomenda, por exemplo, que o rapaz evite circular por becos e vielas, por não saber o que vai encontrar pela frente, e dar preferência às vias principais. Pede ainda para evite usar fone de ouvido, para poder ficar atento ao que acontece ao redor. Também orienta que em caso de abordagem policial, seja educado, se deixe ser revistado e mostre o celular, quando for pedido, com o cuidado de manter apagadas mensagens que podem parecer comprometedoras.

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Já outra moradora da Vila Cruzeiro diz que, na favela, sons dos risos, dos gritos que ecoam dos campos de pelada e da música alta são os sinais evidentes de que a comunidade está em paz. Silêncio é visto com apreensão.

—Quanto mais quieta está a favela, sinal de que alguma coisa ruim pode acontecer — revela.

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Cria do Alemão, a rapper MC Martina, usa os versos para retratar a realidade da favela. Ela crê que a cultura pode mudar destinos. No final do mês lança o segundo livro de poesias “Entre o Banzo e a Bala”, onde diz, usando a linguagem da comunidade: “Nós não morre só de tiro/nós morre pelo descaso”.



Com informações da fonte
https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2025/11/01/estamos-traumatizados-moradores-da-penha-e-do-alemao-contam-como-e-viver-numa-area-dominada-pelo-trafico.ghtml

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