Pontualmente às 3h chega a saudação no Whatsapp: “Bom dia para todos os amigos e irmãos do grupo. Que Deus abençoe e proteja nós nessa caminhada, família”. Em seguida, começam os primeiros informes dos integrantes do grupo espalhados pelo Rio: são olheiros do Comando Vermelho monitorando 24 horas por dia a movimentação de tropas policiais. É o que revelam mensagens interceptadas pela Polícia Civil fluminense, evidenciando que o tráfico montou um aparato para vigiar portas de batalhões, entradas das favelas e as principais vias da cidade, numa engrenagem que conta ainda com drones e câmeras de segurança nas imediações de comunidades.
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Os grupos de mensagens eram acompanhados de perto por Carlos da Costa Neves, o Gadernal, membro da cúpula do CV e um dos alvos da megaoperação da semana passada nos complexos da Penha e do Alemão — ele segue foragido. Segundo investigações da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE), o traficante é o “general de guerra” da facção, responsável por estratégias de ataque contra quadrilhas rivais e a polícia. Comunicados de acompanhamento dos passos das forças policiais foram encontradas em um dos celulares monitorados pelos agentes e abastecem várias investigações contra o tráfico.
Um dos grupos usados pelos criminosos leva o nome de um aplicativo de delivery e um emoji de moto. O GLOBO teve acesso a esse conteúdo: ainda de madrugada, os olheiros começam a acompanhar o tráfego de viaturas por todo o Rio. As mensagens expõem que há espiões em diversas vias importantes da cidade, como Avenida Brasil, Linha Amarela, Avenida Paulo de Frontin e Rua 24 de Maio.
Em 6 de novembro de 2023, por exemplo, um olheiro avisou que havia um comboio saindo do 16º BPM (Olaria) pouco antes das 5h. Outro vigia estava na Avenida Francisco Bicalho, no Centro do Rio, que dá acesso às principais vias expressas cariocas. Às 5h, ele tranquilizou os comparsas. No áudio, fica claro que ele estava no trânsito: “Tá passando só ônibus da PM mesmo. Vazio”. Uma hora depois, ele enviou outro informe: “Tá passando aqui umas viaturas da Força Nacional. Tudo vazia”.
Aqueles eram os primeiros dias de patrulhamento da Força Nacional, que teve efetivo empregado para reforçar o policiamento na Avenida Brasil e em outras vias expressas quando o Rio enfrentava mais uma crise na segurança pública.
Dois dias depois, às 5h, um deles informou que um comboio de sete viaturas do Batalhão de Choque passava pela Avenida Paulo de Frontin, em direção ao Túnel Rebouças. Ele ainda compartilhou um vídeo feito por um pedestre da Praça Condessa Paulo de Frontin, no Rio Comprido, que mostrava os policiais. O homem alertou que havia “blindado, uma ambulância do Gesar (Grupamento Especial de Salvamento e Ações de Resgate) e umas barcas (viaturas) maneiras do Choque”.
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Os PMs passaram em direção à Barra da Tijuca, e um dos olheiros se desculpou por não ter conseguido acompanhar o comboio da Zona Sul:
“Eu peguei a moto aqui no sentido da Lagoa (Rodrigo de Freitas), mas ele já tava lá na frente”.
Outro alertou que a tropa poderia estar indo para a Cidade de Deus, também controlada pelo CV. O grupo só se tranquilizou quando descobriu por olheiros que as viaturas passaram pelo Morro do Banco, no Itanhangá, e estavam a caminho da Muzema — na época controlada pela milícia.
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Em novo expediente, um homem avisou sobre um comboio da Polícia Civil acompanhando carros do Ministério Público. Em seguida, outro olheiro disse que acabara de ver os veículos: “passou na Linha Amarela sentido Barra da Tijuca”. O primeiro informante disse, em seguida, que os agentes se dividiram e não havia veículo blindado com eles. Até a movimentação do Exército foi avisada no grupo de monitoramento do tráfico. Um dos olheiros informou que viu duas picapes dos militares passando pela Zona Norte em direção à Rua 24 de Maio ou o bairro de Triagem.
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Em mais um dia de trabalho, ainda no início da manhã, um dos vigias demonstrou estar ao lado da sede do Batalhão de Choque, no Centro do Rio. Ele avisou que saiu um comboio pelo “sambódromo”, vizinho do prédio dos PMs. Outro alertou que acabara de ver motos da unidade na Avenida Presidente Vargas, sentido Zona Norte.
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Em seguida, um dos olheiros, que pilotava uma motocicleta, começou a acompanhar os policiais na altura da Vila Olímpica da Mangueira. Ao chegar à Rua 24 de Maio, escreveu esbaforido:
“Subiu, subiu aqui o viaduto aqui do rato, aqui ó. Região do Jacaré, hein. Nove barcas (viaturas) do Choque, tudo cheia. E a ambulância da Gesar”.
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O celular de Gadernal mostra ainda outras estratégias de monitoramento. Nas favelas controladas pelas facções, são instaladas câmeras de segurança para monitorar os principais pontos de interesse dos traficantes. Em uma das conversas, quem instala os equipamentos explica os valores:
“Tem que fazer o pedido das câmeras. Demora de três a quatro dias pra chegar. Cada câmera é R$ 200, e cada Wi-Fi, R$ 50. Fica R$ 250 cada ponto”.
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Do celular, Gadernal também acompanhava de perto outras favelas controladas pelo CV. Uma delas é o Morro do Juramento, em Vicente de Carvalho. No grupo em que os traficantes locais compartilham informações, como os plantões das bocas de fumo, um deles enviou a foto do monitoramento das câmeras com um emoji de urso, em referência a Edgar Alves de Andrade, o Doca ou Urso, chefe do CV. Nas favelas da quadrilha, até drones são usados para controlar rivais e a polícia. Alguns são equipados, inclusive, com garras que soltam explosivos remotamente.
Ontem, as polícias Civil e Militar do Rio prenderam um homem em Queimados, na Baixada Fluminense, acusado de monitorar viaturas. A PM diz que alinha estratégias e ações de inteligência com a Polícia Civil, que afirma monitorar as ações criminosas, até em ambiente virtual, e tentar identificar os envolvidos.
