Lembrança boa de uma época inesquecivelmente ruim

Tempo de leitura: 3 min



Junho de 2020. Dominado pela Covid 19, o mundo se protegia de algo desconhecido, mas mortal. 

Começo do isolamento social, quando a adesão ao novo comportamento era grande. Faz mais de 5 anos. Muito tempo. Todavia ainda está tão nítido no meu cérebro que relembro frequentemente e, não posso negar, com muita emoção. 

Era infalível. 

Diariamente, exatamente às 17h, o som triste de um saxofone quebrava o silêncio que circulava entre os prédios do meu condomínio. Quem já ouviu Stan Getz, Wayne Shorter ou Charlie Parker concordará comigo quando afirmo ser do sax o mais educado e melancólico som produzido por um instrumento de sopro.

Pois bem, todas as tardes, sempre no mesmo horário, aquele sax começava a produzir músicas suaves, algumas vezes jazz, mas quase sempre a mais pura bossa nova raiz. Nos primeiros dias, alguns aplausos tímidos vinham de algumas varandas dos apartamentos próximos, depois aumentaram os aplausos e os ouvintes.

O que nunca consegui saber foi de qual apartamento, andar ou prédio, saia o som. Talvez de alguma varanda privilegiada o músico pudesse ser avistado. Do meu isolamento era impossível. Mas, qual a importância disso? Nenhuma, suponho. 

Pouco a pouco, dia após dia, formou-se uma corrente invisível entre os vizinhos desconhecidos que, afastados de qualquer convívio social, ansiavam pelo final das tardes. No horário previsto, espontaneamente, eles iam para as varandas ouvir o concerto. A música do saxofone unia aquelas pessoas que estavam tão próximas e tão distantes. 

Escutando as melodias, alguns versos há muito esquecidos afloravam, aos pedaços:

 “…tristeza não tem fim, felicidade sim…”

“…não há paz…é só tristeza e a melancolia que não sai de mim…”

“…se você disser que eu desafino amor…só os privilegiados…”

“…It was fascination, I know…”

Uma tarde, o músico anônimo encerrou a apresentação tocando o Hino Nacional em um arranjo mais lento do que o normal. Foi lindo e triste. Parecia uma despedida. As varandas, subitamente, começaram a cantar o nosso “Ouviram do Ipiranga”. Ao final, os aplausos se misturaram às lágrimas que escorriam em muitos rostos escondidos nas sombras do entardecer.

Foi uma despedida.

O sax silenciou.

O músico sumiu. 

Desde então, durante toda a vigência da pandemia, sem nenhuma combinação prévia, diariamente, nos finais das tardes, exatamente às 17h, aqueles desconhecidos ocupavam as suas varandas e aplaudiam o silêncio, como se o sax ainda tocasse para eles.

Aos poucos as pessoas foram deixando de comparecer e os aplausos, tal como o sax, também emudeceram.

O post Lembrança boa de uma época inesquecivelmente ruim apareceu primeiro em Tempo Real.



Com informações da fonte
https://temporealrj.com/lembranca-boa-de-uma-epoca-inesquecivelmente-ruim/

Compartilhe este artigo
Nenhum comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *