Junho de 2020. Dominado pela Covid 19, o mundo se protegia de algo desconhecido, mas mortal.
Começo do isolamento social, quando a adesão ao novo comportamento era grande. Faz mais de 5 anos. Muito tempo. Todavia ainda está tão nítido no meu cérebro que relembro frequentemente e, não posso negar, com muita emoção.
Era infalível.
Diariamente, exatamente às 17h, o som triste de um saxofone quebrava o silêncio que circulava entre os prédios do meu condomínio. Quem já ouviu Stan Getz, Wayne Shorter ou Charlie Parker concordará comigo quando afirmo ser do sax o mais educado e melancólico som produzido por um instrumento de sopro.
Pois bem, todas as tardes, sempre no mesmo horário, aquele sax começava a produzir músicas suaves, algumas vezes jazz, mas quase sempre a mais pura bossa nova raiz. Nos primeiros dias, alguns aplausos tímidos vinham de algumas varandas dos apartamentos próximos, depois aumentaram os aplausos e os ouvintes.
O que nunca consegui saber foi de qual apartamento, andar ou prédio, saia o som. Talvez de alguma varanda privilegiada o músico pudesse ser avistado. Do meu isolamento era impossível. Mas, qual a importância disso? Nenhuma, suponho.
Pouco a pouco, dia após dia, formou-se uma corrente invisível entre os vizinhos desconhecidos que, afastados de qualquer convívio social, ansiavam pelo final das tardes. No horário previsto, espontaneamente, eles iam para as varandas ouvir o concerto. A música do saxofone unia aquelas pessoas que estavam tão próximas e tão distantes.
Escutando as melodias, alguns versos há muito esquecidos afloravam, aos pedaços:
“…tristeza não tem fim, felicidade sim…”
“…não há paz…é só tristeza e a melancolia que não sai de mim…”
“…se você disser que eu desafino amor…só os privilegiados…”
“…It was fascination, I know…”
Uma tarde, o músico anônimo encerrou a apresentação tocando o Hino Nacional em um arranjo mais lento do que o normal. Foi lindo e triste. Parecia uma despedida. As varandas, subitamente, começaram a cantar o nosso “Ouviram do Ipiranga”. Ao final, os aplausos se misturaram às lágrimas que escorriam em muitos rostos escondidos nas sombras do entardecer.
Foi uma despedida.
O sax silenciou.
O músico sumiu.
Desde então, durante toda a vigência da pandemia, sem nenhuma combinação prévia, diariamente, nos finais das tardes, exatamente às 17h, aqueles desconhecidos ocupavam as suas varandas e aplaudiam o silêncio, como se o sax ainda tocasse para eles.
Aos poucos as pessoas foram deixando de comparecer e os aplausos, tal como o sax, também emudeceram.
O post Lembrança boa de uma época inesquecivelmente ruim apareceu primeiro em Tempo Real.
Com informações da fonte
https://temporealrj.com/lembranca-boa-de-uma-epoca-inesquecivelmente-ruim/