Evangélicos vão muito além de ‘Apocalipse nos trópicos’

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A quem quiser saber o que está acontecendo com os evangélicos no Brasil, recomendo que comece observando os debates travados em torno das festas juninas, e não pelo documentário “Apocalipse nos trópicos”, de Petra Costa.

Os evangélicos estão em guerra nos trópicos, mas não é o “Apocalipse” político da Petra. A batalha é para dominar as festas juninas. Desde 2017, a festa de São-João de Campina Grande, na Paraíba, conta com cantores evangélicos. Por lá já passaram estrelas do mundo gospel como Deive Leonardo, Fernanda Brum e Aline Barros.

O título do documentário de Petra me fez lembrar uma passagem do livro “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, na qual os evangélicos são mencionados:

— O austero metodismo e o puritanismo jamais florescerão nos trópicos.

A opinião citada na obra de Holanda é de Thomas Ewbank, um viajante inglês que visitou o Brasil em meados do século XIX. Se Ewbank voltasse, no século XXI, ficaria surpreso ao ver que sua profecia estava errada. Os evangélicos floresceram nos trópicos, mas estão menos austeros. Na verdade, andam até participando de festas. Sem dúvida, isso faria John Wesley, pai do metodismo, revirar no túmulo. Ainda mais se soubesse que cantores protestantes sobem no mesmo palco de outro Wesley, o Safadão.

A relação entre evangélicos e sociedade é de mão dupla. Sustento que eles estão mudando a cara do Brasil, assim como a brasilidade dos trópicos poda o que lhes resta da austeridade protestante original.

Observar o “quebra-espinha” do forró gospel de Campina Grande ensina mais sobre as mudanças na cultura evangélica do que se fixar nos crentes envolvidos no “quebra-quebra” do 8 de Janeiro, apresentados por Petra com tons apocalípticos.

No protestantismo e suas variações pentecostais e neopentecostais, não há lugar para a festa. A vida do evangélico típico sempre se organizou em torno da tríade casa, trabalho e igreja. A ida a shows, como do Parque do Povo, ainda que seja para participar de um show gospel, é a incorporação de uma dimensão proibida para o evangélico: a festa.

Há evangélicos que condenam as noites regadas a música gospel como “mundanismo”. Outros, como a cantora Fernanda Brum, justificam a presença na festa como missão de pregar a palavra de Deus em todos os lugares. E há crentes que disparam:

— Só fazem missão no São-João porque o cachê é alto.

Em outros lugares, com outras dimensões, adaptações e rejeições das festividades juninas continuam sendo debatidas. Por exemplo, há escolas evangélicas que realizam “festa caipira”. Outras simplesmente proíbem festas juninas, e algumas escolas realizam a “festa sem João”, pois julgam que a menção ao nome do santo católico seja idolatria.

O desconforto de parte dos evangélicos não é porque a festa junina é, na sua origem, católica. É mal-estar com a festa, uma dimensão estranha à cultura protestante. “Os dois caminhos” é um quadro evangélico. Em casas de convertidos às igrejas evangélicas, na primeira metade do século XX, era comum encontrá-lo. No caminho da perdição estão o salão de baile e o teatro; no caminho da salvação, o trabalho e a igreja.

O “arraiá gospel” é uma espécie de terceiro caminho no quadro protestante clássico. Para o crente tradicional, não é permitido ir a festas ou dançar. Mas, e “se for uma festa para cantar louvores e dançar para Jesus? Pode?”.

O “jeitinho” — para lembrar um conceito do antropólogo Roberto DaMatta, que os evangélicos buscam para ter na vida um pouco de festa e diversão — me faz lembrar da afirmação que abre o clássico “Raízes do Brasil”:

— Somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra.

Sob a perspectiva cultural, cabe a pergunta: algum dia os evangélicos serão brasileiros ou o Brasil será evangélico?

*Valdinei Ferreira, doutor em sociologia pela USP, é criador do Mapa Centrante, iniciativa na área da saúde mental, e pastor da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil



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