A Constituição Federal de 1891 tornou o Brasil um estado laico, e a Constituição Cidadã de 1988 confirmou esta hipocrisia. Hipocrisia? Sim, hipocrisia constitucional, afirmo alto e bom som.
O que seria um estado laico? Seria todo aquele que além de não possuir uma religião oficial, garante a liberdade religiosa a todos os cidadãos, sem favorecer ou prejudicar, ou permitir que alguém prejudique, qualquer religião ou crença específica. Isso significa que o Estado não se envolve em assuntos religiosos e, em contrapartida, as instituições religiosas também não interferem nas decisões do governo, e nem tem participação na política partidária vigente.
Agora, por favor, releiam calmamente o parágrafo anterior e vejam se encontram algum ponto daquela definição de estado laico que se coadune com a realidade atual do nosso país. Eu não encontrei nada.
Mas, por outro lado, basta puxar um pouco pela memória para vocês se lembrarem de algumas coisas que justificam a nossa qualificação agressiva. Como se considerar laico um país onde os feriados religiosos como Natal e Corpus Christi são reconhecidos oficialmente? Não bastasse isso, há o feriado nacional no dia da Padroeira do Brasil, a catolicíssima Nossa Senhora Aparecida, também reverenciada na Umbanda como Oxum, a orixá das águas doces, do amor e da fertilidade. E registre-se, a legislação vigente (Lei Federal 9093, de 12 de setembro de 1995) prevê e permite que os municípios criem até quatro feriados religiosos (um deles sendo obrigatoriamente a sexta-feira da Paixão), o que comprova a presença da religião no calendário civil.
Se vocês se voltarem para aspectos fiscais, observarão que a Constituição reconhece a religiosidade ao garantir imunidade tributária aos templos de qualquer culto, o que inclui patrimônio, renda e serviços relacionados às suas finalidades essenciais. Criada com o objetivo de proteger a liberdade religiosa, essa imunidade tem sido ampliada em demasia, criando privilégios e fortunas pessoais que em nada contribuem para o objetivo original.
A Constituição é clara ao proibir o Estado de promover eventos religiosos com verbas públicas ou manter relações de dependência com instituições religiosas. Todavia, frequentemente vocês veem as prefeituras patrocinando festas, congressos e marchas religiosas, em todos os rincões do Brasil.
Além dos feriados religiosos, isenções fiscais e patrocínios já mencionados, há outros elementos simbólicos e institucionais que frequentemente põe em xeque a efetiva laicidade do Estado brasileiro. Com efeito, são corriqueiras as presenças de crucifixos em tribunais, repartições públicas e, pasmem, em plenários legislativos. Quantas vezes testemunhamos inaugurações de obras públicas, sessões legislativas ou eventos cívicos começarem com orações ou bençãos religiosas, geralmente cristãs?
Ultimamente, tem sido cada vez mais comum e rotineira a utilização de discursos políticos com apelo religioso, e muitos candidatos, padres, pastores-deputados-senadores e até autoridades eleitas, utilizarem símbolos, linguagens e promessas religiosas em campanhas e no exercício de mandatos, confundindo a esfera pública com a religiosa e comprometendo a imparcialidade que caracterizaria o Estado laico.
Então, afirmo que o Brasil é formalmente laico, mas na prática revela uma convivência ambígua entre o Estado e as religiões, mostrando que arguir a laicidade constitucional não passa, como qualifiquei no início, de uma rematada hipocrisia que é mantida para satisfazer as conveniências particulares de autoridades e religiões.
Rio, 2025
2025-09-03 12:00:00