Do Grito do Ipiranga, em São Paulo, à encenação dos passos iniciais da nova nação, no Rio de Janeiro

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Ao retornar de São Paulo — na viagem em que disparou o hoje histórico “Grito do Ipiranga” —, Dom Pedro I apareceu em um camarote do Real Theatro de São João, exibindo no braço uma faixa verde e amarela onde, segundo publicações sobre a época, se lia “Independência ou morte”. Foi aclamado pelo público. Era 15 de setembro de 1822, e o endereço — hoje ocupado pelo Teatro João Caetano, no Centro do Rio — foi escolhido para a celebração pública da separação política entre o Brasil e Portugal.
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Esse cenário marcante da nossa Independência foi construído à semelhança do São Carlos — principal casa de ópera de Lisboa — e inaugurado em 12 de outubro de 1813. O São João foi concebido inicialmente como um ambiente de cultura e de encontros sociais da família real e de sua comitiva, que se transferiram para a então colônia em 1808, fugindo da invasão de Portugal pelo exército de Napoleão Bonaparte. O palco não demorou a se tornar “arena política”, como lembra a historiadora Lucia Bastos, professora da Uerj:
— Quando chegaram as notícias da Revolução Liberal de Portugal, de 1820 (que resultou no retorno da corte a Portugal, em abril de 1821, e na aprovação da primeira constituição da monarquia portuguesa, em setembro de 1822), o São João deixou de ser apenas a casa cultural, de espetáculos, onde a sociedade mostrava joias e vestidos e assistia a peças e recitais, com artistas europeus. Passa a ser ainda um centro de demonstração política. Além da cerimônia religiosa, todos os eventos importantes tinham uma espécie de comemoração cívica no teatro, antes da Independência e nos anos que a sucederam.
Ilustração do Real Theatro de São João (hoje Teatro João Caetano) no antigo Largo do Rossio (atual Praça Tiradentes)
Divulgação/Acervo da Biblioteca Nacional
O Teatro João Caetano como é hoje
Léo Martins
Novo Império em cena
O também historiador Rafael Mattoso acrescenta que, naquele momento, nem todos concordavam com a emancipação política do Brasil:
— Havia, inclusive, um grupo de províncias contrárias, ligadas a Portugal, que formaram a base do Partido Regressista, que queria o regresso da Família Real para Portugal. Esse teatro representava um espaço de encontro, de trocas, de articulações políticas, principalmente dos agentes que tinham mais influência junto à corte, as elites coloniais e, depois, imperiais.
Diante de contexto marcado por opiniões divergentes, Dom Pedro I quis assinalar a Independência com símbolos. Após trocar o bracelete azul e branco, com as cores oficiais da monarquia portuguesa de então, pelo verde (da Casa de Bragança) e amarelo (da dinastia da Casa de Habsburgo, da sua esposa, Dona Leopoldina), fez uma encomenda ao pintor francês Jean-Baptiste Debret. Para firmar a ideia de nova nação, era preciso substituir o desenho do pano de boca de cena do teatro, em que súditos portugueses se ajoelhavam perante o reino de Portugal.
A obra de Debret exibia um país com negros, brancos, indígenas e mestiços, além de soldados, civis, mulheres e crianças. Foi pintado ainda um vaso em forma de chifre, uma cornucópia, com frutas tropicais, aos pés do trono onde está sentada uma mulher que representa o poder do novo império, tendo ao fundo matas exuberantes.
— A ideia era reforçar uma espécie de identidade para o novo império — destaca Lucia Bastos.
Jornal “O Espelho” noticia a Independência
Acervo do historiador Rafael Mattoso
Um novo império, aliás, que só virou notícia de jornal no dia 20 de setembro. “Independência ou morte! Eis o grito accorde de todos os Brasileiros”, anunciava O Espelho.
— O Grito do Ipiranga foi noticiado de forma breve — recorda Mattoso.
Aquarela do Largo do Rossio (hoje Praça Tiradentes) com o Real Theatro de Dom João
Divulgação/Acervo da Biblioteca Nacional
A despeito das resistências, a emancipação se consolidou. Através de imagens, o pano de boca do São João também se perpetua — o original se perdeu, possivelmente em um dos um dos três incêndios que o teatro sofreu, todos no Império. O primeiro aconteceu em 25 de março de 1824, após a saída de Dom Pedro I da casa, onde havia jurado a primeira Constituição do Brasil, e deixou apenas quatro paredes de pé. Depois, as chamas arderam em 1851 e em 1856, o que levou Dom Pedro II a criar o Corpo de Bombeiros.
— Dom João tinha pressa para construir o teatro e, para fazer as suas fundações, utilizou pedras que serviriam para erguer a catedral. O povo dizia que ele usou pedras sagradas para fazer a casa do diabo. Criou-se um mito — conta o diretor do Teatro João Caetano, Marcos Edom. — O fato é que, antigamente, usava-se parafina para fixar a pintura dos cenários, e a iluminação era a vela. Uma combinação que acabava provocando fogo.

O Teatro João Caetano quando foi reconstruído em 1930
Divulgação/Acervo do Teatro João
Os dois grandes painéis do pintor modernista Di Cavalcanti, denominados “Samba” e “Carnaval”, que estão no Teatro João Caetano desde 1930
Divulgação/Teatro João Caetano
“Não existe mais senhor”
O Real Theatro de São João — rebatizado como Imperial Theatro de São Pedro de Alcântara, Teatro Constitucional Fluminense, Teatro de São Pedro, e, finalmente, Teatro João Caetano, em homenagem ao ator e arrendatário do espaço — ficava no antigo Largo do Rossio, que também mudou de nome: virou Praça da Constituição e, em 1890, Praça Tiradentes. Por lá já estava, há quase 30 anos, a estátua equestre de Dom Pedro I.
Teatro mais antigo do Rio, o João Caetano teve quatro concepções arquitetônicas. Em 1928, foi posto abaixo. Dois anos depois, reinaugurado como um prédio moderno, em estilo art-déco, ganhou murais de Di Cavalcanti — “Samba” e “Carnaval” —, tombados como patrimônio, reformados e hoje no foyer, no segundo andar. Do passado imperial, o espaço não guarda relíquias físicas. Uma exposição — fechada temporariamente para a instalação de um elevador no prédio de três andares — conta, em painéis, sua história. No mais, restam lembranças dos primeiros momentos de um país que ganhava autonomia.
— Quando Dom Pedro I entra (no teatro, numa das visitas após a Independência), um militar português grita: “Viva o nosso senhor!”. O público reage e diz que, pelas novas leis constitucionais e liberais, não existe mais senhor — conta Lucia Bastos.



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