Com a aprovação da volta da “gratificação faroeste” pela Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), o Ministério Público Federal (MPF) enviou um ofício ao governador Cláudio Castro (PL) afirmando que a proposta é inconstitucional. A bonificação está prevista em uma emenda apresentada por deputados a um projeto do Executivo para reestruturar carreiras da Polícia Civil, que foi aprovado em plenário. O texto incluído permite que o agente receba de 10% a 150% do salário em caso de “neutralização de criminosos”. O bônus para matar retorna ao Rio no momento em que o estado registra o menor número de vítimas por intervenção policial no estado em dez anos.
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O texto aprovado na Alerj prevê a gratificação quando os policiais civis apreenderem armas de grande calibre ou de uso restrito, ou “neutralizarem” bandidos em operação. Já há uma movimentação nos bastidores da Assembleia para estender o mesmo pagamento a policiais militares.
No parecer enviado a Castro, o procurador da República, Júlio José Araújo Júnior, titular da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do Rio, elenca três pontos centrais de inconstitucionalidade: vício de iniciativa (a emenda não poderia ter sido de autoria do Legislativo), descumprimento de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 635 (a ADPF das Favelas) e violação do direito fundamental à segurança pública.
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Em 2020, no curso da ADPF 635, o Supremo suspendeu normas estaduais que excluíam a redução da letalidade policial como critério de avaliação dos agentes. Para o MPF, premiar a “neutralização de criminosos” contraria frontalmente essa decisão da Corte.
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A Procuradoria lembra ainda que a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil na Chacina da Nova Brasília justamente por violações cometidas em operações policiais no Rio, e alerta para o risco de nova responsabilização internacional caso a lei seja sancionada. Em 1994, 13 pessoas foram mortas em uma ação das polícias Civil e Militar na comunidade no Complexo do Alemão.
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“Ao andar na contramão das diretrizes, estimulando a letalidade policial, o projeto de lei padece de vícios de inconstitucionalidade quanto à violação do próprio direito fundamental à segurança pública”, conclui o procurador no documento.
Desde a aprovação na Alerj, na terça-feira, O GLOBO busca um posicionamento do governador, a quem caberá sancionar ou vetar o projeto em até 15 dias. No entanto, Castro não se pronunciou. Caso ele decida por manter na íntegra o texto aprovado, a bonificação precisará ter uma regulamentação do governo estadual para começar a valer. Em caso de veto, uma nova votação na Alerj dará a palavra final sobre a medida. A emenda foi aprovada com 45 votos favoráveis e 17 contrários.
Especialistas alertam que, no jargão policial, o termo “neutralizar” significa matar — o que transforma a bonificação em um estímulo direto à letalidade.
— Há um ponto muito importante que foi destacado também pelo Supremo, de que não se combate crimes cometendo crimes. Isso expõe a segurança da população, especialmente a da parcela que é mais vulnerável à violência policial, como o pobre que mora em favelas — destaca Daniel Sarmento, professor de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio (Uerj).
Delegado de polícia aposentado e pós-doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra, Marcus Neves, porém, discorda que a “gratificação faroeste” represente um ataque à segurança pública.
— A chamada “gratificação faroeste” não é direcionada para estimular policiais a matarem. A intenção é premiar o policial que, exercendo a função pública, coloca a sua vida em risco para combater a criminalidade. Agora, se existem policiais que matam com a intenção de receber uma gratificação, eles estão cometendo um crime contra a vida, vão ser expulsos da corporação e vão ser condenados por crime de homicídio. Não é por isso que vamos criminalizar toda uma classe. Agentes assim são um ponto fora da curva. Em regra, o policial, quando sai para uma operação, não vai com a intenção de matar. Essa ideia é equivocada. Ele vai para cumprir a lei, e, eventualmente, pode ocorrer a morte. Em 20 anos como delegado, comandei diversas operações com resultado morte, e em nenhuma delas eu vi policial matando por matar — observa.
Lessa teve ‘ato de bravura’
A “gratificação faroeste” já existiu nos anos 1990, durante o governo Marcello Alencar, mas foi derrubada em 1998 por pressão da sociedade civil, após denúncias de que o benefício incentivava execuções sumárias. Anos depois, alguns policias conseguiram na Justiça reaver o benefício atrelado ao salário. Um deles foi o ex-PM Ronnie Lessa, conforme revelou o jornalista do GLOBO Rafael Soares no livro “Milicianos”. O assassino da vereadora Mariele Franco e do motorista Anderson Gomes foi promovido a sargento em 1998 por “ato de bravura” e teve os vencimentos acrescidos de um bônus de 40% em duas promoções em três meses, baseadas no decreto da “gratificação faroeste”.
Um estudo feito pelo professor da Uerj Ignácio Cano, integrante do Laboratório de Análise da Violência, na época, embasou a lei que derrubou a gratificação. O trabalho mostrava que o bônus levou ao aumento da letalidade policial.
— Os deputados colocaram o termo “neutralizar” porque não têm coragem de dizer “matar”. É um retrocesso à barbárie, que vai aumentar também o risco aos policiais — diz o professor, acrescentando que vão aumentar os riscos de balas perdidas.
A aprovação do texto pela Alerj repercutiu na imprensa estrangeira. Foi notícia nos jornais argentino La Nación e Clarín, que apelidou a gratificação de “bônus do Velho Oeste”. O Diário de Notícias, de Portugal, destaca que a emenda foi apresentada por legisladores do espectro conservador.