Câmara põe o tapete vermelho para o crime organizado

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A Câmara dos Deputados — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo


Sem qualquer espécie de debate público, sem exame das comissões, na calada da noite, divorciando-se da vontade da sociedade, de forma antidemocrática e, portanto, na direção oposta à prevalência do interesse público, o presidente da Câmara pautou para votação — e foi aprovada — a PEC da Blindagem Parlamentar, que alguns já chamam até de PEC da Bandidagem.

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É uma tentativa mal disfarçada de quebra grotesca do sistema de freios e contrapesos constitucionais, destroçando totalmente o princípio da separação dos Poderes, cláusula pétrea e pedra angular de nosso sistema constitucional. Propõe a exigência de autorização prévia, mediante votação secreta da respectiva Casa Legislativa, para que se inicie investigação em relação a crime de parlamentares. Isso é, em bom português, legislar em causa própria.

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Se um deputado federal é suspeito de assaltar à mão armada cem bancos, os crimes somente poderão ser apurados se a Câmara permitir. Caso um senador seja suspeito de cometer 200 latrocínios, os delitos ficarão impunes se o Senado não autorizar a responsabilização. Obviamente, vale a mesma regra para os casos graves de corrupção. É clara a pretensão de obter impunidade assegurada pelo ordenamento jurídico.

O que se propõe a partir dessa iniciativa pavorosa é criar uma casta, com a alcunha jocosa de prerrogativa parlamentar, para um nobre grupo de intocáveis, deuses que se colocam acima do bem e do mal. É uma afronta ao princípio da isonomia constitucional, outra cláusula pétrea da Carta.

Estaríamos regredindo aos tempos da ditadura militar, em que se exigia autorização legislativa para processar parlamentares e, ironicamente, fazendo isso logo depois da celebração do Dia Internacional da Democracia (15 de setembro), assim consagrado pela ONU.

Se a proposição prosperar, transformarão o Congresso no paraíso dos criminosos impunes, que jamais serão responsabilizados. Estará assinada a carta-convite às lideranças do crime organizado para ocuparem seus assentos na Câmara dos Deputados e no Senado, sem risco algum de ser molestados. Serão recebidos com tapete vermelho, com pompa e circunstância.

Isso, logo depois da demonstração de força da última segunda-feira, quando foi assassinado friamente o ex-delegado-geral de São Paulo Ruy Ferraz Fontes, cujo carro foi perfurado por 29 tiros de fuzil em Praia Grande. Ferraz era inimigo público do PCC, famoso por ter sido o primeiro a investigar com destemor organizações criminosas desse tipo.

Como se não bastassem tais aberrações, o pacote da blindagem inclui a ampliação da abrangência do foro privilegiado, heresia antidemocrática que hoje já beneficia mais de 54 mil autoridades e ex-autoridades. Pretende-se, generosamente, incluir nessas proteções arcaicas e indevidas os presidentes de partidos políticos, que não exercem qualquer função pública. Os partidos não têm cumprido jornadas de integridade nem de transparência no Brasil, a despeito do disposto na Lei 12.846/2013. A inclusão pretendida, obviamente, representa retrocesso e vem na contramão da vontade da sociedade.

A PEC é mais um tapa na cara da sociedade, com crueldade. Representa ataque grave, inconcebível e inominável ao Estado Democrático de Direito e desrespeita de forma gravíssima a ética republicana e os princípios da impessoalidade, da moralidade administrativa e da legalidade. Deve ser rechaçada de forma vigorosa pelas instituições e pela sociedade civil.

O Senado tem a oportunidade singular de dar concretude ao bicameralismo, sob pena de, mais uma vez, ser necessário recorrer à judicialização, e, certamente, o Supremo Tribunal Federal declarar a inconstitucionalidade da proposição, cumprindo seu papel de guardião da Carta Magna.

*Roberto Livianu, procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo, é doutor em Direito Penal pela USP, idealizador e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção e integrante da Academia Paulista de Letras Jurídicas



Com informações da fonte
https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2025/09/camara-poe-o-tapete-vermelho-para-o-crime-organizado.ghtml

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