‘Bandido bom é bandido solto? Ou não?’, por Nuno Vasconcellos

Tempo de leitura: 20 min


A sociedade não quer saber se a lei que endurecerá o jogo contra o crime organizado é do governo ou da oposição. O que ela quer é mais rigor contra os criminosos

Por Nuno Vasconcellos*

Qualquer que venha a ser a redação final, o relatório do deputado Guilherme Derrite (PP/SP), que prevê um tratamento mais rígido aos bandidos filiados a organizações criminosas, deve ser considerado um avanço. Nem tanto pelas principais mudanças sugeridas — que, por sinal, são absolutamente necessárias. O maior mérito do documento foi ter puxado para o centro da agenda política um debate que já não podia mais ser adiado. Mais do que isso, de conseguir fazer com que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tratasse o combate ao crime como prioridade — o que nunca antes na história de seus governos havia acontecido.

O problema é que, na avaliação de muita gente, o governo tomou a decisão certa pelos motivos errados — com os olhos mais voltados para as consequências eleitorais das providências que devem ser tomadas do que para a necessidade de tratar os bandidos com o devido rigor. Se Derrite não tivesse entrado em cena, se não tomasse as decisões que tomou nem tivesse feito o barulho que fez, talvez a questão continuasse relegada ao segundo plano. E as medidas edulcoradas propostas pelo ministro Ricardo Lewandowski na Lei Antifacções proposta por sua equipe talvez fossem aprovadas como se fossem um grande avanço, sem que ninguém em Brasília ousasse colocar o dedo em feridas que só deixarão de doer no dia que forem tratadas com remédios mais amargos do que os placebos prescritos até agora.

Essa ferida, a criminalidade disseminada pelo país inteiro, tem o tráfico de drogas como núcleo, envolve outras práticas delituosas e é administrada pelas facções. Todas as pesquisas colocam o avanço do crime e dos métodos cada vez mais cruéis utilizados pelos bandidos para subjugar a sociedade como a preocupação número 1 dos brasileiros. Um tratamento mais vigoroso e implacável aos integrantes das facções tornou-se um clamor nacional. Ou melhor, uma exigência que será cobrada nas urnas, nas eleições do ano que vem.
Sendo assim, ao propor em seu relatório o aumento generalizado das penas para os crimes praticados pelo Comando Vermelho, de origem fluminense, pelo PCC, de origem paulista, e por diversas outras facções que surgiram no rastro dessas duas, Derrite tomou uma decisão recebida de braços abertos pela maioria das pessoas. A questão é que muita gente dentro do próprio governo, que sempre considerou o combate ao crime uma pauta “de direita” custou a acordar para a necessidade de enfrentar a situação de forma mais determinada. Mas, agora que acordou, quer tirar o atraso. E passou a agir como se sempre tivesse estado na linha de frente do combate ao crime.

CRÍTICAS HABITUAIS — A Lei Antifacções, elaborada pela equipe de Ricardo Lewandowski, não foi feita a toque de caixa. Ela já estava pronta, aguardando a assinatura pelo presidente Lula, e foi encaminhada ao Congresso, em regime de urgência, no último dia 31 de outubro — quando ainda se ouviam os ecos da operação realizada pela polícia fluminense dias antes, nos aglomerados de comunidades da Penha e do Alemão.

A operação, como se sabe, colocou as forças policiais fluminenses frente a frente com os “combatentes” do narcotráfico, armados com fuzis e vestidos para a guerra. A batalha custou as vidas de quatro policiais e de 117 pessoas do outro lado. O trabalho foi bem recebido pela população e desta vez não adiantaram as críticas habituais da esquerda ao uso excessivo de força por parte da polícia. A sociedade aplaudiu a operação e não restou ao governo, que só pensa em recuperar a popularidade, admitir que as facções são um problema e passar a defender medidas mais efetivas para combatê-las.

Foi neste momento, quando o governo se preparava para mostrar serviço num terreno onde jamais havia pisado, que o deputado Derrite entrou em cena. Capitão da Polícia Militar, com carreira construída na linha de frente do combate ao crime, e secretário da Segurança Pública de São Paulo, ele se licenciou do cargo para assumir a relatoria do projeto.
Como já aconteceu com milhares de matérias encaminhadas pelo Executivo ao Legislativo, Derrite fez várias mudanças no texto original. O governo não gostou da perda de protagonismo. Na quinta-feira da semana passada, a ministra das Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, depois de se reunir com Lula, disse que, naquilo que depender do governo, o texto que será levado à votação no plenário da Câmara, em sessão marcada para a próxima terça-feira, não será o relatório de Derrite. Será o projeto original, feito pelo time de Lewandowski — que previa penas mais brandas e menos rigor na punição às facções.

É justamente aí que está o problema. Ao contrário de Derrite, Lewandowski nunca se mostrou à vontade na hora de propor medidas duras no trato com a criminalidade. Não é segredo para ninguém que as ideias defendidas pelo ministro, desde o tempo que vestia toga no Supremo Tribunal Federal, sugerem que, para ele, bandido bom é bandido solto. Ou melhor, bandido que se livra da cadeia em audiências de custódia, mesmo já tendo sido preso em flagrante duas, dez, cem vezes pela polícia.

Lewandowski não parece ter mudado de ideia em relação a isso. Na semana passada, por exemplo, ele conduziu em Brasília um encontro com os ministros da Justiça dos países do Mercosul para tratar da questão da Segurança. No final, a medida mais enérgica anunciada por ele foi a criação de uma comissão para discutir o assunto.

Ele não falou em operações conjuntas das polícias do Brasil, da Argentina, do Paraguai, do Uruguai e da Bolívia para reforçar a vigilância das fronteiras. Nem em fortalecer o efetivo para coibir o tráfico de drogas, o contrabando de armas e de cigarros e bebidas. A medida mais concreta proposta pelo ministro foi mesmo a criação da comissão para discutir o assunto. É aí que está: se acontecer com essa o que acontece com a maioria das comissões, ela logo cairá no esquecimento ou talvez — quem sabe um dia? — acabará propondo soluções que serão debatidas por uma nova comissão e assim por diante.

ESPADAS SOBRE A CABEÇA — A questão é que, desta vez, a sociedade está com pressa e vem cobrando mais ação e menos lero-lero na luta contra o crime. Nessas circunstâncias, o ministro vem sendo praticamente obrigado a admitir a adoção de soluções mais firmes. Dois comentários. Primeiro: medidas que, para o ministro, podem parecer muito firmes, certamente serão consideradas frouxas diante do rigor que a sociedade vem cobrando no combate aos criminosos. Segundo: o ministro, naturalmente, não parece agir movido por suas próprias convicções, mas pelas necessidades eleitorais do governo.

É aí que está a questão. As demandas da segurança pública sempre foram espadas penduradas sobre a cabeça das administrações petistas. Por mais necessárias que fossem, a esquerda sempre deu um jeito de fingir que elas não existiam. O máximo que se fazia era atribuir às polícias estaduais, responsáveis pela repressão à violência, a culpa pela morte de bandidos em combates armados.

Só que, agora, as demandas sociais por ações mais firmes e implacáveis se tornaram pesadas demais e as cordas que prendem as espadas podem se romper a qualquer momento. Se as lâminas despencarem, podem atingir a credibilidade do governo e dificultarem as possibilidades do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na disputa da reeleição, em 2026. Este é o ponto.

E o que o relatório de Derrite tem a ver com isso? Bem… nesse ambiente, em que o tema incômodo da criminalidade (bem como das medidas amargas necessárias para combatê-la) entrou à força na pauta do governo, a preocupação do Planalto nem parece ser com as mudanças propostas por Derrite. O problema é que, por nunca ter movido uma palha em nome da segurança pública, o Planalto não quer permitir que um penetra queira comer o bolo que mandou fazer para a primeira festa.

O tema da Segurança Pública entrou com tanta força na agenda do Planalto na semana passada que praticamente impediu qualquer outro debate. Ao longo da quinta-feira, o presidente se reuniu com dez ministros de sua equipe. Fez questão de ouvir a opinião de todos eles. Inclusive dos que já foram governadores de estados e tiveram que lidar com a pauta da Segurança.
Qualquer especulação que se faça sobre o objetivo dessas reuniões deve levar em conta, obrigatoriamente, a falta de autoridade do círculo mais próximo do presidente Lula para lidar com esse assunto. Para começo de conversa, é bom deixar claro que a coleta de opiniões sobre a melhor maneira de lidar com um problema grave como esse é sempre saudável. Resta saber, porém, se as opiniões dos ministros Rui Costa, da Casa Civil, e Camilo Santana, da Educação, acrescentam algo positivo às ideias de combate à criminalidade ou se o que eles têm a dizer apenas deixará Lula diante de uma situação embaraçosa.

Nas mãos de Costa, que foi governador por dois mandatos, o estado da Bahia assumiu a vice-liderança no ranking nacional na violência — situação que ainda persiste no mandato de seu sucessor, o também petista Jerônimo Santana. A edição de 2025 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostra a Bahia com 40,6 assassinatos por 100 mil habitantes, atrás apenas do campeão Amapá, que tem 45,1 mortes violentas por 100 mil. O Ceará, governado por Santana também por dois mandatos e agora sob o comando de Elmano de Freitas, outro militante do PT, vem em terceiro lugar, com 37,5 mortes violentas para cada 100 mil habitantes. Sendo assim, e diante dos frutos de seu legado, Costa e Santana parecem ter mais autoridade para contribuir com ideias que levem ao aumento da violência do que com propostas de soluções para combatê-la.

BOI DE PIRANHA — Para a sociedade, e naquilo que diz respeito a seus efeitos práticos — ou seja, na proposta de medidas eficazes que melhorem a Segurança Pública — pouco importa se a lei que será votada pela Câmara dos Deputados na próxima terça-feira e, depois, seguirá para o Senado, foi feita pelo governo ou se é obra da oposição.

A primeira versão do relatório de Derrite continha pontos que, até ele mesmo sabia, jamais constariam do texto final. A equiparação de facções criminosas com organizações terroristas, prevista na primeira versão do relatório, cumpriu o papel daquilo que, no linguajar do sertão brasileiro, é conhecido como “boi de piranha”. Funciona assim: sabendo que o rio que precisa ser transposto pela boiada está repleto de piranhas famintas, o chefe da comitiva escolhe o bezerro mais fraco e o manda na frente. As piranhas atacam o animal, o devoram, saciam sua fome e, assim, a boiada principal, com as reses mais saudáveis, pode chegar à outra margem em segurança. A questão é que, quando a fome do cardume é grande, às vezes é preciso mais de um boi para saciá-la.

A equiparação das facções com o terrorismo foi devorada e saiu do texto com a rapidez que entrou. Da mesma forma, saíram outros chamarizes incluídos no texto para atrair a fúria da esquerda. Outras questões incluídas por Derrite foram mal-recebidas e tiveram que ser revistas. Desviar recursos da Polícia Federal e destiná-los às polícias estaduais, como fez o deputado, é aquilo que, no linguajar juvenil, se traduz como “se colar, colou”. Derrite, convém não esquecer, é secretário de Segurança Pública de São Paulo. E se a relatoria pudesse ajudá-lo a conseguir mais recursos para financiar suas operações, ótimo. Só que não deu certo. O deputado recuou e os recursos que iriam para os estados continuarão destinados à PF.

Naquilo que é substancial, porém, as ideias introduzidas por Derrite foram mantidas. O texto propõe penas de 20 anos a 40 anos de reclusão para uma série de novas tipificações penais (no projeto do governo, a pena máxima é de 30 anos). Entre as novas tipificações estão o uso da “violência ou grave ameaça para exercer domínio ou influência sobre territórios”; a imposição de dificuldades “em algum nível, à livre circulação de pessoas e serviços”, a imposição de “controle social sobre atividades econômicas”; a sabotagem a “meios de transporte e serviços públicos essenciais (energia, hospitais, escolas, aeroportos, bancos de dados)”.

Essas e as outras novas tipificações previstas no texto passam a fazer parte da relação de crimes hediondos — o que dificulta a possibilidade de anistia, graça, indulto ou a concessão de liberdade condicional. É aí que as diferenças entre a direita e a esquerda começam a ficar escancaradas. O governo e seus apoiadores temem que as medidas de endurecimento propostas por Derrite sejam aplicáveis, também, ao MST, ao MTST e a outros grupos de extrema esquerda (que o governo considera “movimentos sociais”) que também se valem de meios violentos, como a invasão de terras e a depredação de propriedades como método de militância política.

O ministério da Justiça, como era óbvio que faria, se posicionou contra o relatório e começou a agir para tirar de cena as medidas rigorosas propostas por Derrite. É aí que está o problema. Muitas das críticas que o governo faz ao projeto de Derrite soam como elogios aos ouvidos de boa parte da sociedade. Quer um exemplo? Vamos lá. De acordo com uma nota emitida pela equipe de Lewandowski, as mudanças podem “instaurar um verdadeiro caos jurídico ao propor inovações para alterar, de forma assistemática e pouco técnica, institutos de longa data testados pela jurisprudência dos tribunais”.

Que “institutos testados pela jurisprudência” são esses? Ora, justamente aqueles que dão à sociedade a certeza de que a lei brasileira é branda demais com os criminosos. Além de proibir visitas íntimas e audiência de custódia aos membros de facções criminosas, a lei também restringe a chamada “progressão da pena” para os integrantes das facções. Pelos critérios atuais, um condenado a pena de prisão em regime fechado pode evoluir para o regime semiaberto após cumprir pouco mais de 16% da pena. O projeto de Derrite prevê a possibilidade de progressão para os faccionados a partir do cumprimento de 70% das penas. Até lá, o criminoso fica recluso.

Os críticos do endurecimento do tratamento às organizações criminosas insistem em dizer que punições mais severas aumentarão a tensão no ambiente prisional. Isso mesmo: uma das críticas que a esquerda tem feito ao projeto de Derrite é que o endurecimento do tratamento aos bandidos vai contrariá-los e provocar sua reação. Pode uma coisa dessas? A esquerda entende que não se deve aumentar o rigor na luta contra as facções porque isso pode fazer com que elas reajam com agressividade e se tornem ainda mais perigosas.

Ora… se esse é o problema, cabe ao Estado se preparar para enfrentá-lo. O que a sociedade não admite é o velho argumento de que os criminosos, sobretudo os traficantes que sequestram comunidades inteiras e usam a população como escudo para suas atividades fora da lei, são pobres vítimas da sociedade.

A sociedade espera uma lei mais dura para combater a criminalidade. Espera, também, que os três poderes do Estado — o Legislativo, o Executivo e o Judiciário — e seus agentes tenham convicção na hora de aplicá-la. Uma lei rigorosa nas mãos de um governo frouxo não surtirá efeito algum. Da mesma forma, uma lei frouxa nas mãos de um governo disposto a combater o crime com rigor também trará problemas e criará expectativas que geram frustrações. É preciso encontrar logo a solução e o equilíbrio — porque a sociedade já está cansada de ver o crime crescer sem que o Estado aja para combatê-lo.

  • *Nuno Vasconcellos é empresário luso-brasileiro com uma carreira voltada para a área de telecomunicações, mídia, tecnologia e negócios imobiliários tanto em Portugal como no Brasil. É presidente do portal de notícias IG e mantém no jornal O Dia, do qual é diretor, a coluna dominical Um Olhar sobre o Rio – com temas relacionados com a vida e a política na cidade e no estado do Rio de Janeiro



Com informações da fonte
https://coisasdapolitica.com/opiniao/16/11/2025/bandido-bom-e-bandido-solto-ou-nao-por-nuno-vasconcellos

Compartilhe este artigo
Nenhum comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *