- Secretário de Administração: Atuação de ex-delegado-geral na Prefeitura de Praia Grande pode ter motivado execução
- ‘Tenho proteção de quem?’: Três semanas antes de ser executado, ex-delegado-geral de SP disse temer pela própria vida
Ainda que a autoria ainda não possa ser atribuída ao Primeiro Comando da Capital (PCC), especialistas afirmam que se tratou de um crime com características profissionais e que teve planejamento, e ainda destacam o poderio que a organização tem na Baixada Santista.
Rafael Alcadipani, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e especialista em organizações policiais e segurança pública, entende que a execução do ex-delegado-geral da Polícia Civil deve ser lido como um recado e uma demonstração de força do crime organizado em São Paulo. Se confirmada a autoria do ataque à facção Primeiro Comando da Capital (PCC), o episódio indica o retorno de ações de maior impacto midiático que foram comuns, por exemplo, no início dos anos 2000.
— Como estamos vivendo esse movimento de máfia, é muito comum eles fazerem ações específicas para gerar esse temor. Precisamos aguardar para saber se, de fato, a responsabilidade é do PCC, mas tem muito cheiro, pelo modus operandi. Acredito que eles estão querendo mostrar força, atuando pelo medo. Deixando claro que, assim, “não se metam com a gente que vai ter problema”.
Câmeras mostram criminosos esperando carro do ex-delegado passar em via de SP
Fontes dedicou a sua carreira a enfrentar o PCC e era o delegado-geral do estado em 2019, quando o criminoso Marcos Willians Herbas Camacho, conhecido Marcola, e outras 14 lideranças do grupo foram transferidos de Presidente Venceslau, em São Paulo, para uma penitenciária de segurança máxima em Brasília, o que fortalece essa linha de investigação. Ele foi “jurado de morte” à época. Pesquisadores da área da segurança pública fazem um paralelo da morte do delegado com a execução do delator Antonio Vinicius Gritzbach, em plena luz do dia, no Aeroporto de Guarulhos no ano passado.
Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, diz que o assassinato de Ruy Ferraz Fontes, assim como a execução de Gritzbach, sugerem tentativas de intimidação do aparato policial como se viu nos anos de 2006 e 2012. Mas, caso confirmada a autoria do ataque como sendo de integrantes do PCC, há uma atualização de método, com um direcionamento muito claro dos potenciais alvos.
— As imagens mostram um nível de planejamento muito sofisticado, diferentemente do mata-mata de antigamente, quando as pessoas tinham medo até de andar na rua por causa dos tiroteios — lembra.
Em 2006, por exemplo, 564 pessoas morreram num espaço de apenas 10 dias após uma série de ataques do PCC, incluindo 59 agentes públicos. A letalidade ficou três ou quatro vezes acima do esperado para o período, segundo análise da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Ela defende uma resposta à altura do estado que passa por integrar as polícias, acrescentando esforços da Polícia Federal, por exemplo, à força-tarefa, o fortalecimento das corregedorias para garantir que agentes não estejam envolvidos, como ficou comprovado no caso Gritzbach, e trabalho de inteligência. Segundo ela, a resposta não pode vir de maneira desordenada como nas Operações Escudo e Verão no litoral paulista, ineficientes em coibir o crime organizado, e sim à semelhança da Carbono Oculto, recentemente deflagrada.
Dias antes de ser executado, ex-delegado disse temer pela própria vida
Luis Flavio Sapori, especialista em segurança pública e professor da PUC Minas, diz que não há dúvidas de que foi uma situação de execução do crime profissional, e que investigar a motivação é fundamental, já que pode haver relação com o trabalho que Fontes exercia atualmente, de secretário municipal de Administração da Praia Grande.
— Foi um assassinato muito técnico, o jeito que o carro para, a técnica, as armas usadas, foi muito similar à execução do Vinícius Gritzbach, no Aeroporto de Guarulhos. Não se pode dizer que foi o PCC, é preciso entender a motivação, já que não necessariamente está relacionado à atuação dele quando era delegado-geral, talvez algum tipo de ação dele estava afetando interesses de grupos criminosos locais, podem ser lideranças criminosas locais — pondera.
Em sua visão, a Baixada Santista hoje vive “uma situação muito semelhante à situação da Baixada Fluminense”, em termos do alto nível de “governança do crime”.
— Esse alto nível de governança do crime é o fenômeno mais importante do crime organizado, é quando a organização criminosa tem UMA simbiose grande com o poder público e se impõe territorialmente com força armada ao morador de um território. É quando o crime está muito entranhado na sociedade, tem um poderio bélico superior ao poder estatal, começa a impor regras aos moradores e comerciantes. A Baixada Santista dá claros sinais desse fenômeno, que é fruto de um processo de 20 anos das forças de segurança de São Paulo negando a existência e a força do PCC.
Marco Antônio Desgualdo, ex-diretor-geral da Polícia Civil entre os anos de 1997 e 2007, diz que o crime destoa da normalidade e que os agressores agiram com “extrema audácia”:
— Foi algo surpreendente que nos deixou abalados. Então, essa situação foi de extrema audácia. E isso fez com que ele despertasse a situação em que estamos. Eu também não ando com o carro blindado, não tenho escolta. Isso faz parte da nossa vida.
Para Alcadipani, o episódio precisa acender o alerta no estado para um programa de proteção aos servidores aposentados.
— A pessoa não pode se dedicar ao Estado a vida toda e, de repente, ser abandonada por ele. Temos o caso aqui do Dr. Lincoln (Gakiya, promotor de Justiça do Gaeco), que vai ser uma dessas pessoas no futuro, e de tantos outros. Há muita gente que o Estado precisa proteger. No Chile, que tem muito menos violência do que a gente, montou-se uma estrutura para lidar com isso, e nós precisamos caminhar nessa direção.
O que se sabe sobre o caso
Três semanas antes de ser executado, Fontes afirmou temer por sua segurança. No dia 25 de agosto, ele disse que estava “sozinho” na cidade da Baixada Santista, reduto antigo do PCC, e que não contava com nenhuma proteção do Estado. A declaração foi dada durante uma longa entrevista para um podcast, ainda em produção, da rádio CBN e do jornal O GLOBO.
— Eu tenho proteção de quem? Eu moro sozinho, eu vivo sozinho na Praia Grande, que é no meio deles. Pra mim é muito difícil. Se eu fosse um policial da ativa, eu tava pouco me importando, teria estrutura para me defender, hoje não tenho estrutura nenhuma.
O GLOBO apurou que, além de uma ameaça de morte mais antiga, Fontes foi citado por criminosos do PCC na mesma ocasião em que a facção jurou de morte o ex-juiz e senador Sérgio Moro e o promotor de Justiça Lincoln Gakiya, do Ministério Público de São Paulo. O nome de Fontes, entretanto, não se tornou público. Ele foi avisado pessoalmente que era um dos alvos, mas a informação ficou apenas no âmbito da inteligência do MP.
Fontes foi o delegado responsável por revelar a organização, a estrutura hierárquica e a dimensão do PCC pouco tempo depois que a facção surgiu nos presídios paulistas. É dele também os inquéritos policiais que resultaram nas principais condenações de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder da organização criminosa.
A equipe de Fontes indiciou todos os líderes do PCC no início dos anos 2000 por formação de quadrilha. Passou a ser tratado como o inimigo número 1 da facção, sendo alvo de planos de execução descobertos pelas autoridades.
Ele foi delegado-geral de São Paulo entre 2019 e 2022. Comandou divisões como Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), Departamento Estadual de Investigações sobre Entorpecentes (Denarc) e Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), além de dirigir o Departamento de Polícia Judiciária da Capital (Decap).
O ex-delegado-geral foi executado a tiros enquanto dirigia um carro na Praia Grande. Imagens do crime mostram seu carro sendo perseguido e colidindo com um ônibus. Na sequência, homens descem de outro veículo e atiram contra o automóvel da vítima. O ataque ocorreu na avenida Doutor Roberto de Almeida Vinhas, na Vila Caiçara, por volta das 18h20, segundo a Polícia Militar.
O secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, afirmou que a Polícia Civil já identificou duas pessoas que participaram do assassinato e pedirá a prisão temporária dos dois. “Seguimos com todas as polícias empenhadas nesse caso, para que os culpados sejam punidos”, escreveu nas redes sociais.