Artistas de diferentes gerações contam o que aprenderam com Caetano Veloso

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“Onde queres família, sou maluco; onde queres romântico, burguês.” A obra-prima O Quereres, de 1984, é um fiel autorretrato de Caetano Veloso, afeito aos paradoxos desde os lisérgicos anos 1960, na visão do jornalista e crítico musical Tárik de Souza, autor de livros como MPBambas. “Ele pensa à frente da vanguarda e, como escreveu na canção Épico, faz questão de manter seus fracassos na parada de sucessos. Por isso, segue tão relevante”, diz.

Responsável por revolucionar a música brasileira junto a Gilberto Gil, Gal Costa (1945–2022) e Tom Zé, com a Tropicália, o baiano de Santo Amaro da Purificação, radicado no Rio, vendeu mais de 1 milhão de cópias do disco Prenda Minha, de 1998, e já teve outro, Araçá Azul, de 1973, devolvido às lojas por mais de 13 000 pessoas. Equilibrando-se entre a reverência à ancestralidade e o rompimento com a tradição, ele compôs dezenas de clássicos, mas jamais se acomodou, trilhando caminhos distintos ao longo da exitosa carreira.

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João Gilberto (1931-2019) sempre foi o ídolo-mor dos tropicalistas, mas os temos da geração anterior deram lugar a figurinos ousados. O violão foi substituído pela guitarra — contra a qual houve até uma marcha, em 1967, com o argumento de que era preciso defender a música brasileira de influências externas. “Não foi brincadeira o que os tropicalistas enfrentaram de oposição ao movimento que empreenderam contra quase tudo e todos”, lembra Tárik, que conheceu o baiano em 1965, na mesma época em que integrava a redação de VEJA.

Para Márcia Fráguas, autora de It’s a Long Way — O Exílio em Caetano Veloso, a capacidade de enxergar à frente é justamente o que faz com que ele seja capaz de se comunicar com a juventude de qualquer tempo. “Caetano tem uma qualidade meio Peter Pan. Embora envelheça cronologicamente, nunca envelhece artisticamente”.

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A trajetória do músico nem sempre foi coberta de louros. Em 2001, com a irreverência que lhe é particular, ele cantou um trecho do funk Um Tapinha Não Dói, em um ensaio aberto do show Noites do Norte no Canecão, e ouviu vaias. “A comissão de ética ficou discutindo o que posso ou não dizer?”, provocou.

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O artista já saiu em defesa de ritmos extremamente populares, como axé, funk e forró eletrônico, em momentos em que eram desprezados pela intelectualidade e pela grande imprensa. Sua variada lista de colaborações artísticas vai do pastor Kleber Lucas ao funkeiro Mr. Catra (1968–2018), passando por David Byrne, da banda americana de rock Talking Heads. No Ecad, ele acumula 631 músicas e 1953 gravações.

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Às vésperas de completar 83 anos — no dia 7 de agosto —, Caetano Veloso segue sendo um artista inquieto e inventivo, e é a atração de encerramento do Enel Festival de Inverno Rio, na Marina da Glória, neste domingo (3). Se o segundo semestre do ano passado foi dedicado a rodar o país em turnê ao lado da irmã Maria Bethânia, em 2025 ele promete que irá descansar. Mas, inquieto que só, decidiu participar de festivais.

Até o fim do ano, terá passado por sete, sendo o último deles o Rock The Mountain, em Itaipava, em novembro. O setlist foi preparado especialmente para esse público e é recheado de hits atemporais para todo mundo cantar junto, como Odara, Sozinho e Queixa, além da nova Um Baiana. A pedido de VEJA RIO, artistas de diferentes gerações revelam o que aprenderam com o ídolo e amigo, e contam histórias deliciosas de bastidores nas próximas páginas. Ele merece todos os parabéns e uma “alegria excelsa”.

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É PRECISO ESTAR ATENTO E FORTE

Uma das inspirações da música Tigresa, a cantora e atriz Zezé Motta relembra passagem em que o músico a defendeu ao sofrer racismo

Zezé Motta: artista recebeu apoio de Caetano Veloso em episódio de racismo (Fernando Torquatto/Divulgação)
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MIL TONS

A atriz Sonia Braga relembra a viagem de trem que fizeram juntos do Rio a São Paulo, e a música que surgiu a partir desse encontro

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Sonia Braga: atriz inspirou duas canções de Caetano Veloso (John Lamparski/Getty Images)

“Caetano ensinou a me enxergar em Trem das Cores, música que compôs depois de uma viagem que fizemos juntos no antigo Trem de Prata, aquele que ia do Rio a São Paulo em nove horas. Durante o trajeto, começamos a falar sobre matizes inexplicáveis, difíceis de nomear. No vagão-restaurante, eu tentava descrever para ele um tom de azul que tinha visto em um filme do Nelson Pereira dos Santos, quando, de repente, entram correndo duas crianças com bochechas rosadas. A partir dali, começamos a perceber e nomear todas as cores ao redor. Ele tem o poder de compreender profundamente as mulheres, e a música-tema que compôs pa ra o filme em que atuei, Tieta, dirigido pelo Cacá Diegues, se tornou um verdadeiro hino do empoderamento feminino, quase um canto tribal: ‘Eta, eta, eta, eta; é a lua, é o sol; é a luz de Tieta’. Caetano também entendeu algo profundo sobre mim. Uma vez disse, e acho que até repetiu: ‘Sonia é uma pessoa simples’. Vindo dele, isso ficou gravado em mim como um grande elogio.”

O MELHOR LUGAR DO MUNDO

O cantor e compositor pernambucano Johnny Hooker homenageou o artista na música Caetano Veloso, de 2017

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Johnny Hooker: artista compôs música em homenagem a Caetano (./Divulgação)

“Fui um adolescente influenciado por referências internacionais. Só mais tarde rolou uma espécie de redescoberta coletiva da minha geração, especialmente com o Transa, de 1972, que voltou com força e relevância. A partir dali, Caetano se tornou um dos primeiros artistas brasileiros a realmente me impactar, me mostrando que era possível ser intenso, provocador e, ao mesmo tempo, carregar uma identidade brasileira muito forte. Ele une drama, estética e brasilidade de um jeito único. Existe, nas entrelinhas da obra dele, uma afirmação poderosa, qua se como um sussurro teimoso de que ‘o Brasil é o melhor lugar do mundo’. E, mesmo com todas as contradições, essa ideia continua ecoando. Depois do sucesso da música que fiz para ele, o próprio Caetano foi a um show intimista que fiz em Salvador. Quando chegou o momento de cantar a música que leva seu nome, ele subiu ao palco e dançou comigo. Encerramos a performance com um selinho. Após o show, fomos jantar juntos. Caetano é, sem dúvida, a definição de gentleman: um intelectual imenso, mas com uma escuta generosa, que se conecta com as pessoas. Sempre fico fascinado ao ouvir suas histórias. Ele fala com a alma, com o coração.”

FAROL DE NOVIDADES

Djavan é grato pelo artista ter se interessado por sua obra ainda no início da carreira e o homenageou em Sina e Eu Te Devoro

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Djavan: ele e Caetano se conheceram há cinquenta anos (Djavan/Divulgação)

“Conheci Caetano há exatamente cinquenta anos, no Festival Abertura, em São Paulo, e ele se interessou imediatamente em ouvir as minhas canções. A nossa amizade nasceu ali. Além de ser um artista incrível, ele está interessado em tudo o que está acontecendo, sempre buscou o novo, e vai ser sempre assim. A nossa parceria começou de um jeito muito interessante, algumas décadas mais tarde. Caetano estava nos Estados Unidos e me mandou a letra de uma música chamada Invisível. A partir daí, compus a melodia, que acabou sendo gravada pela Maria Bethânia, no disco Olho d’Água, de 1992. Um tempo depois, eu enviei a música de Linha do Equador para ele, que me devolveu a letra pronta. Foram parcerias à distância que funcionaram muito bem. Sempre admirei a melodia do Caetano, e a letra dele nem se fala. Mas as melodias são sensíveis, maravilhosas, com harmonias muito próprias. É um artista muito inspirador que continua me inspirando.”

UM GESTO MUDA UMA VIDA

Prestes a estrear na TV, Criolo descobriu que o ícone da MPB queria dividir o palco com ele

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Criolo: rapper incorporou gesto generoso do veterano (Helder Fruteira/Divulgação)

“Em 2011, lancei o Nó na Orelha, que recebeu seis indicações no VMB, o prêmio da MTV. A emissora definiu que eu também teria um número musical, ao lado de outros artistas que estavam começando. Aquilo tudo era muito novo para mim, e estava feliz demais por cantar ao vivo naquele canal. Aí recebi a informação de que o Caetano queria fazer um dueto comigo, porque, segundo ele, Não Existe Amor em SP fechava a trilogia das canções sobre São Paulo. Isso me pegou muito de surpresa. Foi na passagem de som que descobri que ele é um homem gentil, amoroso e muito sensível. Ao final da apresentação, ele fez um singelo gesto de reverência que me marcou e passou a fazer parte da minha vida, uso com outras pessoas. Depois desse episódio, ele me citou em entrevistas ao Washington Post e ao The Guardian, fazendo com que o mundo olhasse para mim de um jeito diferente. Jamais vou me esquecer da grandiosidade, da genialidade, do tamanho da generosidade, da bondade e da simplicidade dele comigo.”

SÁBIAS PALAVRAS

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Mart’nália: Caetano foi o padrinho musical da cantora (Nil Caniné/Divulgação)

Mart’nália não perdia um show de seu mentor, que a fez encontrar o próprio timbre quando se lançou em carreira solo

“Lembro de ouvir o disco Cores, Nomes, de 1982, incessantemente e decorar a letra inteirinha de uma música que era bem difícil. Acho que meu pai tinha até um pouco de ciúmes, de tanto que eu gostava do Caetano. A voz dele, com os falsetes, os graves e os agudos, sempre me encantou. Depois, em 2002, por uma coincidência, ele virou meu diretor musical e me deu uma música, Pé do Meu Samba, que acabou batizando o trabalho. Naquela época, eu era vocalista de apoio do meu pai e cantava no tom que precisasse, então eu não conhecia a minha voz. No estúdio, Caetano falou: ‘Pô, eu já sei que você canta. Quero que você solte a voz como se estivesse em casa, no bar…’. Só depois desse papo eu aceitei o meu timbre rouco. Ele me ensinou que a gente dá o que tem, e é isso. O Caetano de perto é da mesma forma que ele é de longe: de verdade. Ele praticamente lançou a minha carreira.”

EMOÇÃO GERAL

Nem nos melhores sonhos Xande de Pilares imaginou regravar o ídolo de infância

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Xande de Pilares: fã desde a infância, ele fez Caetano chorar com regravação (Fernando Younb/Divulgação)

“Sou noveleiro desde criança e lembro de ouvir Alegria, Alegria em Sem Lenço, Sem Documento, da TV Globo, aos 7 anos. Alguns meses depois, me apaixonei por Muito Romântico, que ouvia no disco do Roberto Carlos, mas também era do Caetano. Eu não esperava um dia poder sentar na mesma mesa que ele, tomando uma sopa e batendo papo. O dia em que ele chorou ouvindo a gravação de Gente para o Xande Canta Caetano, de 2023, foi marcante. Achei que só eu estava emocionado. Até a Paula Lavigne, sempre brincalhona, derrubou algumas lágrimas. Caetano faz questão de nos mostrar o respeito que tem por todos os segmentos musicais, e trata da mesma forma um artista iniciante e um que já seja consagrado. A música é uma coisa maravilhosa, porque nos proporciona coisas que a gente jamais imaginaria, como a amizade de Caetano Veloso.”

SEM FILTRO

Fafá de Belém lançou a música Naturalmente, de Caetano Veloso e João Donato, em seu primeiro compacto, em 1975, e conheceu o amigo numa situação hilária

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