“Voltar quase sempre é partir para um outro lugar”, entoa Paulinho da Viola na canção Samba do Amor. O verso do fim da década de 1960 ilustra o sentimento de Beatriz Milhazes, 65 anos, às vésperas de inaugurar uma exposição individual em sua cidade natal. A partir da próxima quinta (25), a Casa Roberto Marinho, no Cosme Velho, abriga Pinturas Nômades, com um recorte improvável da obra da artista plástica, focando em intervenções arquitetônicas de dimensões colossais que ela já apresentou no exterior e na Pinacoteca de São Paulo, mas nunca na capital fluminense. O impacto começa logo na entrada: as janelas do térreo da mansão foram adesivadas com o colorido típico que a alçou ao panteão da arte mundial. “Tenho sentido um frio na espinha. Por mais que acumule milhares de mostras pelo mundo, o lado afetivo pulsa forte aqui”, revela a artista, ajeitando os cachos com as mãos adornadas por uma penca de anéis, enquanto seu rosto é atravessado por raios de sol filtrados pelos vitrais em tons de azul, amarelo, verde, laranja e rosa. Esse foi o cenário escolhido por VEJA RIO para o ensaio fotográfico, em meio à montagem da exposição, no início do mês.
Há um ano, Beatriz recebeu o convite do diretor da casa, Lauro Cavalcanti, com quem tem uma relação íntima, para realizar uma exposição solo, com cerca de noventa obras, a maior da década ó a última na cidade tinha sido em 2013, no Paço Imperial, com quase cinquenta peças. A dupla jantou semanalmente e fez uma série de visitas à instituição do Cosme Velho para traçar o percurso nos mínimos detalhes. “A gente identifica a linguagem dela, mas a resolução é diferente”, resume Cavalcanti, explicando que a solução foi apresentar, em formato de maquete, criações monumentais exibidas, por exemplo, na Tate Modern, em Londres, no Long Museum, em Xangai, e na Fundação Cartier, em Paris. “É um meio importante na minha trajetória, que abriu portas criativas e trouxe a possibilidade de convivência com a arte fora de museus e galerias, ocupando espaços públicos”, reflete a artista. “Tenho um lado ermitão que vem se ampliando ao longo do tempo. Algo que me motiva nesse tipo de projeto é o ambiente coletivo”, diz, acrescentando que a equipe é 100% brasileira. A exposição também vai contar com pinturas, gravuras, desenhos, escultura e tapeçaria inédita.

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+ Carta ao leitor: a produção valiosa de Beatriz Milhazes e outras doçuras
Filha de um advogado e de uma professora de história da arte, a carioca com quatro décadas de carreira estudou jornalismo antes de se matricular na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Nessa época ganhou corpo a vibrante Geração 80, da qual fazem parte expoentes como Adriana Varejão, Ernesto Neto e Daniel Senise. Ao amor pela pintura somaram-se suportes como serigrafia e colagem, para as quais desenvolveu uma técnica de produção que define como divisora de águas: o monotransfer. Os arabescos característicos de sua obra são resultado de um metódico processo de sobreposição de camadas — que podem passar de 100 — expressando referências como as rendas costuradas pela avó materna, os balangandãs ostentados por Carmen Miranda (1909-1955), os brilhos dos adereços das escolas de samba, os florais da Casa Turuna, antiga loja de tecidos da Saara, e pinturas corporais indígenas. “Beatriz criou uma narrativa de profunda conexão com a cultura popular, representando a diversidade do país”, analisa o gestor cultural e colecionador de arte Fabio Szwarcwald.

O imaginário apoteótico de Beatriz Milhazes abre espaço para uma série de atividades que margeiam a mostra. Uma delas é a performance com dois bailarinos e uma pianista idealizada por sua irmã mais nova, a coreógrafa Marcia Milhazes, que será apresentada em dezembro e março, lá mesmo na Casa Roberto Marinho. O processo criativo em família, aliás, é simbiótico, e Beatriz já criou cenários para espetáculos da caçula. “A obra da Bia tem uma dramaturgia e narrativa de movimentos tão fortes que respingam dentro de nós em sensações. É curioso porque a gente conversa sobre o conceito até que chega o momento em que entramos em silêncio. E ela só assiste ao ato coreográfico na estreia, junto ao público, porque confia plenamente em mim”, conta Marcia. Oficinas de desenho para crianças também integram o programa curatorial. O viés educativo, herdado da mãe, está presente desde 2011, quando foi convidada por uma instituição suíça a comandar um workshop para os pequenos. “Meu trabalho se comunica bem com o universo infantil”, observa Beatriz, contando com o apoio de professoras da Pró-Saber no Rio.

Nas primeiras horas da ArtRio deste ano, a serigrafia Havaí (2003) foi vendida por 250 000 reais. Já a pintura de grandes dimensões Os Legumes (1997), também exposta na feira e reservada para uma coleção internacional, foi avaliada em 5 milhões de reais pela Fortes D’Aloia & Gabriel — que gere o conjunto da obra de Milhazes desde a primeira configuração societária, no começo dos anos 1990. “As exposições em outros países se refletem em valorização comercial. Ela não só é uma das artistas mais relevantes no desenvolvimento da história da arte brasileira deste século, mas importantíssima no circuito de arte contemporânea mundial”, analisa Márcia Fortes, sócia da galeria, destacando que sua representada é a artista brasileira em atividade cuja obra alcançou recorde de preço de venda em leilão internacional. O posto de protagonista de maior artista do Brasil na atualidade é dividido com a também carioca Adriana Varejão, 60 anos. “As duas são as grandes damas do mercado, com obras valiosas e requisitadas pelos colecionadores”, define o marchand Jones Bergamin, o Peninha, diretor da casa de leilões Bolsa de Arte.

Até o último domingo (14), Oxalá, Cor de Pele, Cumaru e Manga e Maracujá em Lilás e Violeta — pinturas que expressam a raiz brasileira de Beatriz — estiveram penduradas nas paredes do Guggenheim de Nova York. A instituição comprou cinco telas em 2001, mas só agora as exibiu ao público, em Beatriz Milhazes: Rigor e Beleza — consagrando-a como a primeira artista contemporânea do Brasil a alçar uma individual no tarimbado museu. “Expor no Guggenheim é um reconhecimento importante não só para a minha carreira, mas para o contexto artístico do nosso país. Ainda bem que estou viva para celebrar esse momento”, constata a artista, que também tem obras nas coleções particulares do MoMA, de Nova York, Museu de Arte Contemporânea de Tóquio, Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofía, em Madri, e Centro Georges Pompidou, em Paris. No portfólio internacional recente conta ainda a participação na Bienal de Veneza de 2024, em parceria com o Victoria and Albert Museum. Para novembro, está programada uma individual na White Cube, de Londres, uma das instituições que representam sua obra no exterior. Em âmbito nacional, Salvador e Recife estão na agenda da artista para o início de 2026.
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Avessa aos holofotes, Beatriz vive uma vida pacata no Leblon, e frequenta diariamente o ateliê, no Jardim Botânico. É adepta da ginástica com regularidade e tem rigor com a alimentação — no passado, foi macrobiótica “antes de ser moda”. O segredo de seu apogeu, revela, está na disciplina, na produção ininterrupta e no privilégio de ter contato com a natureza transcendental do Rio. “É lógico que adoro tudo que conquistei, mas a minha grande ambição era acrescentar um ponto dentro do pensamento da arte abstrata. E acho que consegui. Para ser uma artista internacional, não basta só expor no exterior”, nota a artista, solteira e sem filhos, mas tia coruja de Thomaz Camilo, que a acompanha em mostras mundo afora. Um hábito que adquiriu nos últimos anos foi a escrita. É ela quem assina os textos das suas redes sociais e de aberturas e apresentações nos quatro cantos do planeta. Entre os projetos para o futuro está um livro sobre o que viu e sentiu durante os anos 1990 — plano que ainda está no papel. Assim como em suas obras, é onde tudo começa.
Com informações da fonte
https://vejario.abril.com.br/programe-se/beatriz-milhazes-individual-rio/