Com informações do O Dia. Sem a pretensão de comentar os aspectos constitucionais, processuais e técnicos relacionados com a Ação Penal nº 2668 e com a conclusão do julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro, prevista para acontecer esta semana, a cada dia fica mais evidente que as instituições brasileiras terão que encontrar uma saída política para a armadilha que ameaça paralisar o país. Enquanto não for aberta uma válvula de escape capaz de aliviar a pressão da caldeira ideológica que vem operando a todo vapor em Brasília, o país não conseguirá se livrar dos problemas que estão se avolumando em seu caminho nem restaurar a normalidade institucional que o permitirá seguir em frente.
Bolsonaro será condenado. Isso é líquido e certo. A única dúvida possível a partir dessa certeza é a duração (ou, como se diz no jargão jurídico, a “dosimetria”) e as condições de cumprimento da pena. Pelo que vem sendo demonstrado até aqui, elas tendem a ser duríssimas. A considerar o peso das sentenças aplicadas aos condenados pelas manifestações do dia 8 de janeiro, qualquer pena que vier a ser imputada ao ex-presidente parecerá pequena diante dos crimes que o acusam de ter cometido.
Se uma coadjuvante como a cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, conhecida por escrever a frase “Perdeu, Mané”, com batom, na estátua Justiça, de Alfredo Ceschiatti, em frente ao prédio do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, foi sentenciada a 14 anos de prisão, qual seria a pena razoável para o homem acusado de ser o ator principal dessa ópera? De acordo com o libreto que orienta o espetáculo, tudo parece caminhar para uma pena exemplar. Algumas apostas cravam um castigo superior a 40 anos, em regime fechado, na Penitenciária da Papuda ou algo assim. Será?
É aí que surge uma ideia que, no Brasil, costuma entrar em cena em momentos de impasse político. Trata-se da anistia — como já aconteceu depois da Revolução Constitucionalista de 1932, no início do governo de Juscelino Kubitschek, em 1956, e no final do Regime Militar, em 1979. Em todos esses momentos, houve no início quem resistisse a essa possibilidade e visse nessa medida uma demonstração de fraqueza. Exatamente como está acontecendo agora.
Embora muita gente, especialmente no campo da esquerda, se recuse a debater o assunto com seriedade e encare a simples menção à anistia aos condenados nesta ação penal como uma afronta ao STF, o debate em torno do tema ganhou tanta força na semana passada que nada parece capaz de contê-lo. Sendo assim, o mais prudente a fazer é encarar o tema com seriedade e entender o significado desse gesto.
A anistia, como muita gente acredita, não significa o perdão a um determinado crime. O recurso legal que extingue a punição de um determinado crime é o indulto. A anistia quer dizer esquecimento. Nesse caso, o crime pelo qual uma determinada pessoa foi condenada, a despeito da gravidade que tenha sido atribuída a ele no primeiro momento, deixa de existir e o condenado segue a vida sem qualquer pendência com a Justiça. Em resumo, indulto é a remição da pena. Anistia é a extinção do crime.
“RISCO” DE ANISTIA — Seja como for, a verdade é que essa discussão vem ganhando espaço na medida em que se aproxima a data do veredito que deverá condenar Bolsonaro. Na semana passado, o senador Ciro Nogueira (PP/PI), um dos principais expoentes da base bolsonarista no Congresso, mencionou uma frase que foi dita pelo presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso em um evento promovido por produtores de soja do Mato Grosso no final de agosto, como uma manifestação de apoio à anistia.
A bem da verdade, nada do que Barroso disse pode ser interpretado como uma adesão à causa. Muito pelo contrário. Mas o simples fato do presidente da mais alta Corte do país ter tocado no assunto já significou um estímulo à discussão do assunto. No encontro com os agricultores mato-grossenses, Barroso apenas negou a possibilidade da discussão da anistia ser levada adiante antes de uma sentença contra Bolsonaro no julgamento da ação penal. Depois disso, porém, o tema passava a ser de competência do Congresso Nacional — que é quem tem a responsabilidade de tratar desse assunto.
Diante da repercussão de suas palavras, o próprio ministro tratou de voltar ao assunto para tentar esclarecer a questão. “Não defendi a ideia de anistia. E, caso o tema seja judicializado, não emiti opinião sobre como o tribunal se posicionará.” Tudo bem. De fato, não há no que ele disse inicialmente, ao contrário do que o senador Nogueira deu a entender, qualquer defesa da anistia. No entanto, o simples fato de ter tocado no assunto e remetido a responsabilidade para o Congresso já significa uma novidade em relação à postura que Barroso e os demais ministros do Supremo vinham adotando em relação ao tema. Ao invés de ignorá-lo, o presidente do STF decidiu atribuir a responsabilidade de cada instituição nesse processo — o que não deixa de ser um avanço.
À sua maneira, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva também entrou na discussão — e fez isso num ambiente que costuma ser completamente hostil à simples menção a esse assunto. Em um discurso em Belo Horizonte, diante de uma plateia pequena, mas barulhenta, formada por militantes de esquerda, o presidente admitiu a possibilidade, ou melhor, o risco do assunto ser levado a debate no Parlamento. No lançamento de um programa governamental que prevê a distribuição gratuita de gás de cozinha para famílias carentes (visto pela oposição como mais um evento de antecipação de sua campanha pela reeleição), Lula convocou a militância para resistir a essa ideia. “Se for votar no Congresso, nós corremos o risco da anistia”, disse o presidente.
Assim como a inclusão do tema no discurso de Barroso representa uma mudança importante em relação à postura anterior do Judiciário, as palavras de Lula também podem ser consideradas como uma evolução no debate. Pela primeira vez, o presidente da República admitiu a possibilidade do tema ser levado ao Congresso e, ali, ser aprovado. “O Congresso tem ajudado o governo, mas a extrema direita tem muita força ainda. É uma batalha que tem que ser feita pelo povo”.
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA — O presidente da República e o presidente do STF não foram os únicos a tocar no assunto. A diferença é que, na semana passada, houve uma ampliação significativa nas articulações em torno do tema a partir de ações concretas levadas adiante, por exemplo, pelo governador de São Paulo Tarcísio de Freitas, também aliado de Bolsonaro. Virtual candidato a presidente da República nas eleições do ano que vem, Freitas foi a Brasília numa viagem que coincidiu com os dois primeiros dias do julgamento de Bolsonaro.
Sua agenda foi ocupada pela discussão com políticos da possibilidade de uma anistia que inclua Bolsonaro e a repercussão de sua movimentação foi suficiente para causar desconforto na esquerda. A ponto de um deputado estadual pelo PT, chamado Paulo Fiorilo, ter solicitado que o Ministério Público investigue a viagem do governador por improbidade administrativa. Freitas é acusado por ele de utilizar recursos do estado de São Paulo para financiar uma viagem com o objetivo de articular a anistia a Bolsonaro e aos pelo movimento de 8 de janeiro. Ou seja: ele acusa o governador, que é um político, de fazer política…
No próprio campo da direita, o assunto enfrenta resistências — a começar pelo próprio deputado Eduardo Bolsonaro. Dos Estados Unidos, de onde tenta influenciar medidas que pressionem o governo brasileiro nesse episódio, ele não perde qualquer oportunidade de criticar qualquer solução que não signifique a imediata reintegração de seu pai à política — o que, convenhamos, não tem a menor chance de prosseguir.
Isso dá a medida do desconforto que o debate de um tema sensível como esse tem causado nos meios políticos. A medida deverá, sim, desde que saia de acordo com o que Tarcísio de Freitas e outros políticos mais realistas têm defendido, beneficiar o ex-presidente Bolsonaro, os demais condenados nas ações penais em torno da suposta tentativa de golpe de Estado e a todos os que cumprem pena por envolvimento na balbúrdia do dia 8 de janeiro de 2023. Mas não garante a Bolsonaro, considerado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral, o direito de disputar o pleito presidencial de 2025.
O certo é que a discussão ganhou destaque na semana passada e invadiu com tanta força o debate político que ninguém mais nega que essa questão, que antes era vista como um tema de interesse restrito aos bolsonaristas mais radicais, se impôs e passou a ser tratada como uma possibilidade cada vez mais concreta. E muito embora o claudicante presidente da Câmara Hugo Motta (Rep./PB) insista em dizer que nada existe de concreto sobre o assunto, em Brasília é dado como certo que a discussão se consolidará e dominará a pauta tão logo se encerre o julgamento de Bolsonaro. Isso mesmo: não se falará em Brasília de outro assunto em Brasília que não seja a anistia a partir do momento em que a sentença contra Bolsonaro seja proferida.
FORA DO RADAR — Não se trata, como é mais do que evidente a essa altura do campeonato, de uma discussão tranquila e a simples menção a esse tema, como se vê a todo instante, já é suficiente para aumentar a temperatura das discussões que, nos últimos anos, têm dominado o ambiente político brasileiro. Para muita gente, o tema continua sendo incômodo e pode gerar tensões ainda maiores do que as atuais. Mesmo assim, ele precisa ser enfrentado sob pena daqueles que se recusarem a participar da discussão serem atropelados pelos fatos.
Ou seja, é bom para pensar no assunto e, diante do inevitável, levar em conta algumas possibilidades que até aqui foram mantidas fora do radar. O que aconteceria, por exemplo, se o próprio presidente Lula, ainda que não aliviasse o tom de suas críticas a Bolsonaro e a seus seguidores, passasse a defender a anistia como um recurso capaz de apaziguar o país? Sim. Foi justamente o que fez Juscelino Kubitschek de Oliveira, um dos presidentes mais populares da história brasileira, quando anistiou os militares que pegaram em armas para tentar impedir sua posse, em 1956.
A acusação que, naquele momento, pesava contra o major Haroldo Veloso e pelo capitão José Chaves Lameirão, ambos da Aeronáutica, não se baseava em delações premiadas nem num documento sem assinatura que supostamente propunha um golpe de Estado. Ela se baseava em ações concretas e em declarações públicas que não permitiam dúvidas quanto às intenções dos amotinados. JK, mesmo assim, os anistiou e esse gesto, ao invés de causar transtornos, aumentou ainda mais a sua popularidade.
Já pensou o que aconteceria caso Lula tomasse para si a bandeira que mais tem mobilizado seus adversários e decidisse, ele mesmo, tomar uma iniciativa dessa dimensão em nome da distensão do ambiente político brasileiro? O presidente, é claro, em momento algum demonstrou disposição ou a intenção de seguir por esse caminho e seus seguidores mais aguerridos — que transformaram a frase “sem anistia” em palavras de ordem obrigatórias em todas as manifestações governistas — talvez fossem os primeiros a rejeitar essa possibilidade. Seja como for, não custa insistir nesse ponto: num momento em que a situação política do país atingiu um ponto de tensão insuportável e que qualquer faísca parece suficiente para gerar um incêndio de grandes proporções, um movimento concreto em nome da distensão pode ter efeitos surpreendentes.
O primeiro deles seria o de sequestrar a principal bandeira da direita e dar uma demonstração concreta da intenção de apaziguar os ânimos. O segundo seria o de surpreender um país que há muito tempo não vê uma atitude ousada por parte de seus políticos. O terceiro seria o de eliminar os obstáculos que vêm impedindo o país de encarar o contencioso comercial, político e diplomático com os Estados Unidos e outros problemas importantes com união e chance real de resolvê-los.
Uma discussão como essa, naturalmente, não amadurece de uma hora para outra da mesma forma que sugestões ousadas como essa não costumam ser bem recebidas. Seja como for, fica a dica: que tal tratarmos desse assunto com seriedade?
2025-09-07 14:20:00