O bandido Manuel Moreira, conhecido como Cara de Cavalo, vinha sendo procurado desde que matara o detetive Milton Le Cocq num tiroteio em Vila Isabel, na Zona Norte do Rio. O criminoso, que vivia de extorquir apontadores do jogo do bicho, manteve-se em fuga durante semanas até que, na madrugada de 3 de outubro de 1964, foi fuzilado por policiais numa casa na Região dos Lagos. “Sessenta e um tiros eliminaram Cara de Cavalo em Cabo Frio”, informou o Jornal O GLOBO em sua primeira página.
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“O corpo de Manuel Moreira estava caído na sala, de barriga para cima. Cerca de 100 tiros foram disparados contra ele. A maioria das balas foram alojar-se no abdômen, tórax e uma rajada de metralhadora na cabeça”, descrevia a reportagem. “Próxima à mão, a pistola 45 de sua propriedade”.
Três meses depois, os policiais envolvidos na caça ao bandido fundaram a Scuderie Le Cocq. Espécie de confraria criada com o pretexto de reunir dinheiro para a viúva do detetive, a organização se tornaria, no fim dos anos 1960, o primeiro grupo de extermínio do Rio. Responsável pela morte de centenas de suspeitos de crimes, principalmente na Baixada Fluminense, a Scuderie tinha estatuto e sede, além do apoio público de jornalistas, empresários, advogados e até de juízes e desembargadores.
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O Brasil vivia os anos mais tensos da ditadura militar. Muitos policiais civis atuavam como agentes da repressão. A truculência na área da segurança pública fazia parte de uma ideologia dominante, algo que valia tanto para enfrentar opositores políticos quanto para lidar com bandidos comuns. Ainda não havia crime organizado como hoje, mas gangues armadas de ladrões aterrorizavam a população no Rio com roubos de carros e assaltos a pedestres, residências e estabelecimentos comerciais.
A lista de fundadores da Scuderie estava cheia de policiais que nunca esconderam seu histórico de violência. Entre eles, estava José Guilherme Godinho Ferreira. Conhecido como Delegado Sivuca, ele se gabava da reputação de matador e foi um dos algozes de Cara de Cavalo. Em 1988, já aposentado, Sivuca se candidatou a vereador do Rio, e, em 1990, elegeu-se deputado estadual, sempre com um slogan famoso que faz ecos na sociedade até os dias de hoje: “Bandido bom é bandido morto”.
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Segundo dados de uma pesquisa do Instituto Datafolha realizada após a operação policial mais letal da história do Rio, semana passada, 51% dos cariocas ainda concordam com a máxima de Sivuca.
De acordo com uma reportagem do GLOBO em outubro de 1988, o então candidato a vereador, que na época também era presidente nacional d Scuderie Le Cocq, gabava-se em praça pública de ter matado “uns 200 marginais em combate” e de ter respondido a mais de 150 sindicâncias policiais.
O símbolo da Scuderie tinha uma caveira com ossos cruzados e a siga EM. Segundo o documentário “‘Homens Sem Lei’, lançado recentemente pelo canal A&E, todo mundo no Rio sabia que as letras se referiam a “esquadrão da morte”. Os membros do grupo circulavam com o símbolo colado nas janelas de seus carros, mas, quando perguntados, diziam que a sigla significava “esquadrão motorizado”.
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O primeiro assassinato do Esquadrão da Morte a ganhar destaque na imprensa aconteceu no dia 7 de maio de 1968, em Jacarepaguá, onde o corpo de um homem foi achado pela manhã com as mãos atadas e cinco tiros na cabeça. Pendurado no pescoço, um cartão com a caveira de ossos cruzados dizia: “Eu era ladrão de automóveis”. Sérgio de Almeida Araújo, o Sérgio Gordinho, era comparsa de Fernando Pereira Júnior, o Nandinho, um conhecido “puxador de carros” do Rio.
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A partir de então, várias reportagens mostraram imagens de pessoas assassinadas em locais ermos com o símbolo do Esquadrão da Morte deixado ao lado dos corpos. Assim como hoje, boa parte da sociedade, revoltada com a criminalidade, aplaudia as execuções, acreditando que aquela seria uma forma eficaz de reduzir a violência (será que era?). Oficialmente, o então governador do Rio, Negrão de Lima, condenava o envolvimento de policiais nas mortes, mas, na prática, não era bem assim.
Em novembro de 1969, O GLOBO relatou, com destaque, a criação de um grupo especial de dez policiais que teriam a missão de combater o crime “sem limitações de poder”. De acordo com a reportagem sobre a novidade, cada agente poderia escolher outros sete homens para compor sua equipe. Entre os chamados “homens de ouro” da polícia, havia diversos integrantes conhecidos da Scuderie Le Cocq, como Euclides Nascimento, Nelson Duarte e Mariel Mariscot.
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Ex-guarda-vidas que entrara para a polícia no início dos anos 1960, Mariscot ganhou fama de galã e matador. Era visto na noite de Copacabana com modelos e atrizes, mas se gabava mesmo era de eliminar suspeitos e desafetos. Em 1971, foi expulso da polícia após ser preso por crimes como falsificação de cheques, exploração de prostitutas e homicídio. Em 1981, Mariel foi assassinado a mando de bicheiros que o acusavam de matar um contraventor para ficar com as bancas dele.
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Diversos outros “homens de ouro” caíram em desgraça. Nelson Duarte foi condenado a seis anos de prisão por suborno, obstrução da Justiça e abuso de poder. Acusado de dar proteção a um traficante, Lincoln Monteiro foi condenado a dois anos de cadeia. Ex-presidente da Scuderie le Cocq, Euclides Nascimento foi alvo de sanções disciplinares e se envolveu com bicheiros. Numa longa entrevista ao GLOBO em 1981 sobre a ligação entre policiais e criminosos, o contraventor Capitão Guimarães disse que Nascimento tinha fama de bom tira, mas que, “na verdade, era um terrível contrabandista”.
De acordo com o escritor Zuenir Ventura, a ação de grupos de extermínio nos anos 1960 podem ser considerados “o ovo da serpente” da violência policial no Rio. No livro “Cidade partida” (Cia das Letras), de 1994, o autor descreve tensões sociais daquele período até a chacina de Vigário Geral, em 1993, quando 21 pessoas foram mortas por PMs que queriam vingar a morte de quatro agentes na favela.
