Traficantes expulsaram operários que estavam trabalhando na construção da futura Clínica da Família do Vidigal na manhã desta terça-feira (09) na rua Dr. Olinto Magalhães, no Vidigal, Zona Sul do Rio. Segundo relatos, homens armados entraram no local e avisaram que era para suspender a obra, alegando que “o prédio pertence ao domínio do tráfico”. A informação foi antecipada pela colunista Berenice Seara, no portal Tempo Real, e confirmada pelo GLOBO.
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De acordo com a Secretaria municipal de Saúde (SMS), a obra foi suspensa temporariamente e um boletim de ocorrência foi registrado de forma on-line na Polícia Civil. O órgão informa ainda que vai pedir o apoio das forças de segurança do Estado para que os trabalhos possam ser retomados o mais rapidamente possível.
Titular da 15ª DP (Gávea), a delegada Daniela Terra afirma que, assim que o registro virtual constar para ela, iniciará uma apuração.
— Vamos instaurar uma investigação para apurar quem são os autores das ameaças, a ligação da facção e de seus líderes com a ocorrência e o porquê dessas intimidações — disse.
O GLOBO apurou que Unidade de Polícia Pacificadora da comunidade entrou em contato com a prefeitura afirmando que garante a segurança para a continuidade da obra. Por isso, o município tentará retomar a intervenção nesta quarta-feira (10).
Apesar da denúncia da prefeitura, o presidente da Associação de Moradores do Vidigal, Mazola Faria, divulgou uma nota nesta noite desmentindo que tenha havido ação de criminosos na obra.
O imóvel construído pelo crime organizado foi embargado pela prefeitura em 2023, então com dez andares. Este ano, após liberação dos órgãos técnicos, o município iniciou as obras para transformá-lo em uma clínica da família. A reforma, avaliada em R$ 6 milhões, começou demolindo metade dos pavimentos, já que as configurações urbanísticas da área só permitem prédios de até cinco andares. O plano é que o restante seja destinado à unidade de saúde, que deve dispor de seis equipes de Saúde da Família, oito consultórios, sala de acompanhamento ambulatorial, medicação e para realização de ressonância magnética. A previsão é que a obra seja concluída até o ano que vem.
O movimento da prefeitura para dar nova destinação ao imóvel ilegal é respaldado por um decreto municipal (nº 53.287) de 2 de outubro de 2023 que regulamenta a transformação de construções irregulares ligadas a associações criminosas. O texto dispõe sobre os procedimentos administrativos a serem adotados para o cumprimento da função social dessas propriedades, sugerindo que, caso verificada a integridade dessas construções, elas sejam convertidas, preferencialmente, em espaços voltados à promoção da saúde e da educação.
Uma nova clínica da família é uma exigência antiga do Vidigal, já que o Centro Municipal de Saúde Rodolpho Perissé, construído em 1981 e atualmente responsável pelo atendimento da comunidade, está sobrecarregado e, com espaço físico limitado, não tem conseguido dar conta de atender a toda a população, estimada em 11.375 moradores pelo Censo 2022 do IBGE. O problema afeta pacientes com câncer e outras doenças graves. Em maio de 2023, moradores fizeram um abaixo-assinado pedindo a implementação de outra unidade de saúde.
— A clínica é um sonho de milhares habitantes dentro do Vidigal. Até o momento, só temos um posto, construído quando a comunidade só tinha cinco mil moradores. Então, não é mais suficiente e precisamos para ontem dessa nova unidade. Era para as obras terem começado em agosto do ano passado, mas atrasaram, e estamos nessa espera — disse um morador.
Há um ano, durante sua campanha eleitoral, o prefeito Eduardo Paes prometeu a inauguração do novo prédio, destacando sua origem:
— O prédio veio dessa indústria imobiliária do crime organizado e vamos transformar numa Clínica da Família pro Vidigal, uma favela que a gente está em falta — disse Paes em setembro de 2024.
As equipes de Saúde da Família que integram a estrutura das clínicas são multidisciplinares, compostas por profissionais como médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, agentes comunitários, agentes de vigilância em saúde, dentistas, auxiliares e técnicos de saúde bucal. E oferecem serviços como consultas, exames, vacinação, visitas domiciliares e acompanhamento de doenças crônicas, como hipertensão e diabetes.
De janeiro do ano passado a julho deste ano, o Centro Municipal de Saúde Rodolpho Perissé realizou 246 mil procedimentos, sendo 40 mil visitas domiciliares. A maioria ligada à prevenção de problemas de saúde ou remediação deles, como o controle de pressão, monitoramento de glicose em pacientes diabéticos e exames de sangue.
O atual posto possui 45 profissionais de saúde, sendo quatro médicos. Com a obra, a ideia é ampliar em 30% a quantidade de atendimentos feitos e ter uma melhor estrutura para atender até pequenas emergências.
Não é a primeira que uma obra da prefeitura encontra barreiras no crime organizado. No ano passado, o prefeito Eduardo Paes denunciou que bandidos exigiram R$ 500 mil da empreiteira responsável pela implantação do Parque Piedade, na Zona Norte, na área onde ficava a antiga Universidade Gama Filho.
Na ocasião, três homens teriam ido ao canteiro fazer a cobrança: “Ou paga ou a obra não sai”, teria dito um deles. Após a ameaça, a empresa notificou a prefeitura sobre a extorsão, e a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais (Draco/IE) instaurou uma investigação sobre o caso.
No mês anterior, em dezembro de 2023, a Polícia Federal e o Ministério Público fizeram uma operação na Zona Oeste que trouxe à tona como a quadrilha do miliciano Luís Antônio da Silva Braga, o Zinho, hoje preso, exigia dinheiro de empresas com projetos em andamento na região. Os investigadores localizaram no celular de um bandido planilhas de pagamentos com os nomes de três empreiteiras. A extorsão estava tão estabelecida que os valores podiam ser quitados por meio de Pix, e a empresa poderia até emitir nota fiscal. A cobrança era denominada pela organização criminosa como “taxas de segurança”.
No ano passado, foi necessário montar uma força tarefa para demolir três prédios irregularmente erguidos pelo tráfico na Rocinha, também na Zona Sul. Em um deles havia uma cobertura luxuosa com vista para o mar e até uma passagem secreta na parede com caminho para a área de mata. As construções custaram cerca de R$ 6 milhões ao tráfico.
No Complexo da Maré, na Zona Norte, investigações descobriram que o tráfico estava financiando a construção de 40 prédios a R$ 30 milhões na favela Parque União, comandada pelo Comando Vermelho. O terreno tem cerca de 3.314 metros quadrados de área, uma academia, um campo de futebol e o Ciep Professor César Pernetta, da rede estadual, como vizinho. As unidades eram vendidas por valores entre R$ 45 mil e R$ 80 mil, e o aluguel era de cerca de R$ 1.200 mensais
Com 4,4 mil domicílios, o Vidigal tem uma população de 11,3 mil habitantes, segundo o último Censo do IBGE, feito em 2022. Os dados mostram ainda que a atual clínica da família é o único estabelecimento de saúde da favela, que também tem duas unidades escolares, 20 estabelecimentos religiosos e, na época da coleta dos dados, 139 edificações em construção ou reforma.
Uma pesquisa da Prefeitura do Rio mostra que, somente em 2023, a favela teve cerca um milhão de turistas, superando diversos cartões-postais da cidade, como o Cristo Redentor e o Pão de Açúcar.
2025-09-09 17:45:00