De resumos escolares a orientações profissionais, os pedidos de ajuda aos chatbots de inteligência artificial (IA) generativa se tornaram frequentes no cotidiano dos brasileiros. A tecnologia é capaz de processar um grande volume de informações disponíveis na nuvem para gerar novas respostas, em linguagem muito parecida com a de um ser humano. E é claro que num país com 78,2 milhões de endividados — segundo o Mapa da Inadimplência e Negociação de Dívidas no Brasil, publicado em julho pela Serasa —, as solicitações de planejamentos para sair do vermelho também viraram pauta das conversas.
No último mês, postagens sobre como abordar o tema no ChatGPT, da OpenAI, viralizaram na web. Mas será que a prática é segura para o bolso? O EXTRA simulou três situações de endividamento e pediu à plataforma planos práticos para resolver as pendências em prazos curtos. As respostas foram encaminhadas a planejadoras financeiras, e os leitores podem conferir as avaliações das profissionais abaixo.
Cristiano Correa, professor de Finanças do Ibmec-SP, resume o cenário:
— A gente sabe exatamente quanto ganha, mas nem sempre sabe quanto gasta. O problema financeiro surge muitas vezes desse desconhecimento e da falta de organização. De forma geral, a inteligência artificial pode sim ser um bom mecanismo para entender a sua situação, e até dar algumas ideias para o controle financeiro, mas ela deve ser usada com bastante cautela, verificando e validando os dados.
O alerta é feito porque essas ferramentas têm “alucinações”, como são chamados os resultados incorretos ou enganosos gerados pelos “robozinhos”. Nas simulações submetidas à análise, as especialistas encontraram erros em cálculos, por exemplo. Além disso, Correa pontua que um “prompt” (o comando dado ao chatbot) enviesado pode levar o foco da IA para um problema específico, mesmo havendo outras dívidas mais prejudiciais ao orçamento. E a falta de contexto pode render sugestões irreais.
Para a vendedora de loja Luz Marina Vieira, de 28 anos, a organização do seu orçamento pelo ChatGPT foi uma virada de chave. Sem noção do que entrava e saía da sua conta, ela não via, até o mês passado, a possibilidade de quitar o total de dívidas acumuladas ao longo do tempo. Mas a tecnologia sugeriu um parcelamento mostrando que, com alguns ajustes na rotina financeira, era possível arcar com as cotas até sair do vermelho.
— Eu fui conversando com o ChatGPT como se fosse com uma amiga, contando sobre as minhas comissões e os meus gastos. E ele me deu uma planilha com margem para eu pagar parcelas das dívidas. Fiz os acordos e este mês já paguei minhas contas — diz Luz.
Planejadora Financeira CFP, Samira Munaier avalia que somente situações simples podem ser resolvidas através de consulta à IA:
— Melhor ainda se isso trouxer aprendizado a quem utiliza a ferramenta, criando um senso de análise das soluções apresentadas. Mas você realizaria um tratamento de uma doença grave somente com orientações do ChatGPT? Provavelmente não. Da mesma forma, quanto mais complexa a situação financeira, é necessário mais respaldo profissional para resolvê-la.
Fala aí, IA
Nas simulações a seguir, usamos o prompt da Erika Mello, do Organiza.AI:
Preciso da sua ajuda para organizar minhas finanças. Aqui estão os dados:
Renda mensal: [informe o valor]
Dívidas: [liste os valores, tipos e prazos, exemplo: cartão de crédito R$ X, empréstimo Y etc.]
Despesas fixas: [aluguel, transporte, alimentação etc.]
Despesas variáveis: [lazer, compras etc.]
Crie um plano prático e realista para eu sair do vermelho em Z meses. Seja direto, mostre cortes possíveis, estratégias de renegociação e me diga exatamente o que fazer mês a mês.
Fale comigo de forma simples, estou pronto pra agir.
Jovem que ganha o salário mínimo fez compras sem planejamento no cartão de crédito
Simulação 1
Extra
Samira Munaier, planejadora financeira CFP, aponta que a IA errou cálculos de economia com o almoço, quando a instrução dada pelo jovem não foi clara.
Samira Munaier, planejadora financeira
Divulgação
A partir da resposta apresentada, o jovem pode começar a enxergar uma forma de resolver seu problema. Mas precisa raciocinar sobre os custos que a IA escolheu reduzir, conferir os cálculos apresentados e avaliar se é possível colocar em prática os cortes indicados.
Se preferir, ele pode escolher outras economias, pois agora sabe por onde começar.
Casal tem empréstimo para pagar em seis meses, mas não tem sobra no orçamento
Simulação 2
Extra
Wanessa Guimarães, planejadora financeira CFP pela Planejar, destaca que a IA organizou bem os números, mostrou cortes possíveis e considerou a alternativa de renegociação da dívida. O plano, mês a mês, é simples e direto.
Wanessa Guimarães, planejadora financeira CFP pela Planejar
Divulgação
Ela aponta, porém, que a IA não tem sensibilidade a prioridades pessoais, como a possibilidade de não conseguir fazer a própria faxina, por questões de saúde.
Outras limitações:
imprecisão nos cálculos – o valor da parcela mensal da dívida não foi calculado com exatidão);
ausência de questionamentos cruciais – como se há reserva de emergência;
falta de análise de opções de créditos mais baratas – por exemplo, portabilidade.
Família com criança quer liberar o cartão de crédito em três meses, mas também tem empréstimo a pagar
Simulação 3
Extra
Mariana Gonzalez, planejadora Financeira CFP, não considera o plano realista ao sugerir cortes em medicamentos e ao combinar a redução de custo com almoço fora e no supermercado.
Mariana Gonzalez, planejadora Financeira CFP
Divulgação
Outro ponto que chamou a atenção da especialista foi o erro de cálculo nos juros do empréstimo. A parcela suposta foi de R$ 560 enquanto deveria ser mais próximo de R$ 670.
Por fim, ela alerta que noções erradas do usuário sobre suas necessidades também podem condicionar a IA a calcular um plano que não a favorece. Nem sempre pagar o cartão será prioridade, frente a um empréstimo que tem cobrança de juros elevadíssimos, por exemplo.
Saiba mais sobre as simulações
As orientações dadas pelo ChatGPT incluíam, na maioria dos casos, dicas de médio e longo prazo para melhoria das finanças e até criação de fundo de reserva. Os especialistas ouvidos consideram essencial a continuidade dos bons hábitos. O EXTRA, no entanto, suprimiu estes conteúdos, focando na análise dos planos emergenciais para quitar dívidas pedidas.
Nesta publicação, as respostas da IA foram editadas, sem alterar sugestões oferecidas, cálculos apresentados e resultados prometidos. Os especialistas convidados a avaliarem o material entregue pelo ChatGPT tiveram acesso aos planos de quitação das dívidas na íntegra.
Procurada pelo EXTRA, a OpenIA, desenvolvedora do ChatGPT, não enviou comentário sobre o uso da ferramenta para planejamentos de quitação de dívidas.
O perigo dos acessos indevidos
Informações financeiras são dados que exigem proteção especial das empresas que as acessam, segundo a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Ainda assim, pouco se sabe, de acordo com especialistas em Segurança Cibernética, como inteligências artificiais tratam este conteúdo quando aparece nos seus chats. E mesmo que os vazamentos sejam pouco prováveis, há outras possibilidades de acesso indevido às informações prestadas.
— Dado o volume de dados e a maneira pela qual eles são processados e armazenados (o que não é de conhecimento público), cremos que é improvável o vazamento de uma conversa em específico de uma pessoa comum. Mas é, em tese, possível. Outro risco é uma pessoa entrar na sua conta e acessar seu histórico de conversas na plataforma — diz Guilherme Alves, gerente de projetos da SaferNet, ONG que atua em prevenção e combate a crimes cibernéticos.
A única forma de se manter totalmente seguro é, portanto, não compartilhar informações financeiras nesses ambientes. No caso de prompts que as solicitam, os especialistas recomendam usar números aproximados ou fictícios, que levem à reflexão para possíveis mudanças no orçamento, ao invés de entregar valores exatos de renda, dívidas e despesas.
Mas há ainda outros passos para minimizar os riscos de acesso indevido às informações prestadas. A primeira delas é proteger o login naplataforma com uma senha forte e habilitar sempre a autenticação em duas etapas, para dificultar que golpistas entrem nas suas contas.
Como minimizar os riscos
Também é possível gerir históricos na maioria das IAs. No ChatGPT, por exemplo, uma conversa salva pode ser apagada, a partir da seleção com o cursor na barra lateral. Além disso, o usuário pode desativar o arquivamento de conversas, clicando no nome ou foto de perfil, no canto inferior esquerdo, selecionando “Configurações” e, em seguida, “Controles de Dados”. Neste momento, basta desligar a opção “Histórico de Bate-papo e Treinamento”.
As estratégias apontadas podem evitar grandes danos ao titular de dados financeiros informados e à sua rede de contatos, alerta Fabio Assolini, diretor da Equipe Global de Pesquisa e Análise da Kaspersky para a América Latina:
— O comportamento do usuário é decisivo para reduzir riscos. Essas informações (como salário, despesas mensais ou dívidas) podem ser utilizadas pelos cibercriminosos para golpes envolvendo engenharia social, phishing ou fraudes financeiras. As informações pessoais, quando combinadas com outros dados que já circulam na internet, permitem a criação de perfis detalhados da vítima e aumentam as chances de ataques direcionados.
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Inteligência Artificial contra as dívidas: especialistas dão dicas sobre pedidos de planejamento financeiro feitos a chatbots
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