Portas antigas, histórias novas: o que os detalhes da arquitetura do Rio nos revelam

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Sem dar muita atenção, passamos por elas todos os dias. Além da função evidente, as portas guardam história, bagagem arquitetônica e outras pistas sobre transformações ocorridas ao longo do tempo. Algumas mais rebuscadas, outra menos, essas peças do cotidiano também são verdadeiros retratos de época. No início, era a madeira, um dos materiais preferidos até hoje. Mas já houve a fase do ferro, que entrou em cena no século XIX, e no Brasil viveu seu auge entre os anos 1930 e 1950, período que coincide com o avanço da indústria siderúrgica nacional. Quem conta é Marconi Andrade, restaurador e fundador do grupo SOS Patrimônio:
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— O auge se deu nos anos 1940. Nos prédios em estilo art déco e também nos de art nouveau, embora nesses em menor quantidade, é o que mais se vê. Virou febre, assim como a cor preta. Foi também o período em que surgiram muitos profissionais e a mão de obra barateou — explica Marconi, que restaurou portas como a do prédio da antiga Beneficência Portuguesa, que hoje abriga o hospital Glória D’Or, no bairro de mesmo nome.
Entrada do palácio da fazenda
Entre os principais exemplares dessa fase na cidade estão as peças de ferro do Palácio da Fazenda, sede regional do Ministério da Fazenda no Rio, na Avenida Presidente Antônio Carlos. O prédio foi inaugurado em 1943, e as portas são obra do italiano Oreste Fabbri.
— Trata-se de um dos exemplares mais significativos da esquadria metálica desse período — aponta o arquiteto e historiador Nireu Cavalcanti, que é autor, com Hélio Brasil, do livro “Tesouro: o Palácio da Fazenda, da Era Vargas aos 450 anos do Rio de Janeiro”, lançado em 2015 pela Pébola Casa Editorial.
Portas que contam histórias. Portão do Museu da República
Gabriel de Paiva/ Agência O Globo
A porta principal do Palácio do Catete, hoje Museu da República, é considerada uma das mais bonitas. Uma peça de madeira é antecedida por contraporta de ferro fundido com imagens de deusas gregas. Foi trazida da França, na época da construção do prédio, entre 1858 e 1867, pelo Barão de Nova Friburgo. Já as do Paço Imperial, na Praça Quinze, estão entre as mais antigas: de ferro forjado, teriam vindo de Portugal entre 1738 e 1743.
Algumas dessas relíquias, além de serem verdadeiros trabalhos artísticos, têm histórias curiosas. É o caso das que protegem a Igreja da Candelária, no Centro. Feitas em bronze, foram encomendadas ao escultor português Antônio Teixeira Lopes, que sugeriu a substituição da madeira, como previsto originalmente, por material mais nobre e de durabilidade maior.
Os modelos dos três exemplares que ficam na entrada principal, em barro e gesso, foram executados no ateliê de Lopes, na cidade de Vila Nova de Gaia, em Portugal. De lá, viajaram até Paris, onde as peças foram fundidas, e, em seguida, apresentadas ao público na Exposição Universal de Paris, em 1900, grande feira de inovações da época. Após a mostra, finalmente chegaram de navio ao Rio, em 1901, três anos depois da inauguração final do templo — houve uma inauguração parcial em 1811.
Portas da Candelária ,no Centro
Gabriel de Paiva / Agência O Globo
Entre os elementos esculpidos em relevo estão anjos, guirlandas e pombas, estas representando o Espírito Santo. Na parte superior da porta central destacam-se as imagens da Virgem Maria e do Menino Jesus.
— Na igreja, tudo é muito bonito. Mas as portas se destacam pelo fato de serem também uma obra de arte que pode ser admirada mesmo sem alguém precisar entrar no templo — observa Dijavan Mascarenhas, arquivista da Candelária.
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Outras portas monumentais, essas de madeira, feitas no começo do século passado para dois prédios na Avenida Rio Branco, no Centro, são assinadas pelo mesmo artista: o marceneiro português Manuel Ferreira Tunes.
Entre elas se destaca o conjunto de quatro portas do prédio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), na esquina com a Rua Teófilo Otoni: no nobre jacarandá foram entalhadas em alto relevo figuras da flora brasileira, além de motivos náuticos, como barcos. Estes últimos se explicam pelo fato de o imóvel ter servido antes como sede da Companhia Docas de Santos na cidade.
Joias da marcenaria
Consideradas joias da marcenaria nacional, as portas do Centro Cultural Justiça Federal (CCJF), na altura da Cinelândia, também são obra de Tunes, que costumava datar e assinar seus trabalhos. Uma das descobertas mais curiosas ocorreu em 2007, durante um trabalho de manutenção. Na ocasião, o restaurador George Sliachticas notou que havia algo estranho na escultura que representa a Justiça —deusa com venda nos olhos — em relevo no topo. Observando de perto, verificou que havia emendas atrás da cabeça, nas costas e embaixo do queixo, todas fixadas com parafuso. Ele reparou ainda que no interior da obra havia partes ocas.
ortas do Centro Cultural da Justiça Federal, na avenida Rio Branco
Gabriel de Paiva / Agência O Globo
— Há duas versões para isso. A primeira era a de que provavelmente essas esculturas de madeira maciça eram escavadas para que as peças rachassem menos e ficassem mais leves. A segunda explicação tem a ver com a expressão “santo do pau oco”, normalmente relacionada a imagens religiosas, em cujo oco eram escondidos objetos contrabandeados — explica Edvaldo Júnior, arquiteto e servidor do Setor de Restauro e Preservação Predial do CCJF.
Inspiração artística
Portas e portões sempre fascinaram a designer e fotógrafa Isabel Elia, cujo interesse maior é pelas formas geométricas. Depois de 11 anos morando em Berlim, na Alemanha, ela voltou ao Rio há quatro anos, quando decidiu se dedicar a essa paixão. Hoje circula com celular em punho fotografando o que vê. As imagens captadas são postadas nas redes sociais e inspiram desenhos que integram o projeto portais.club, na internet. Ela acredita que esses elementos ajudam a contar um pouco da história da cidade, por meio dos padrões e dos materiais encontrados em cada bairro.
Portão do prédio Itaóca, na rua Duvivier, no Lido
Gabriel de Paiva / Agência O Globo
— Minha missão com isso é a de educar as pessoas, mostrando como elas podem enxergar o seu bairro de outra forma, através dos padrões e técnicas de serralheria, por exemplo, que variam de um lugar para outro— observa Isabel, que elege como uma de suas favoritas a porta do edifício Itahy, uma joia art déco encravada no Lido, em Copacabana.
No Itahy, a porta de ferro batido pintado de preto tem como destaque na parte de cima uma índia-sereia-cariátide de longa cabeleira sentada numa rocha, em postura altiva, e cercada de animais marinhos, como descreve o pesquisador e fotógrafo Luiz Eugênio Teixeira Leite, no blog “O Rio que o Rio não vê”, que originou um livro com o mesmo título lançado em 2012, sobre a riqueza da arquitetura carioca.



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