Entre maracatus elétricos, violões percussivos, rimas afiadas e encontros improváveis, alguns discos ultrapassaram o tempo e se transformaram em marcos geracionais. São obras que definiram estéticas, criaram pontes entre estilos e refletiram o Brasil de cada época. Nos dois próximos fins de semana, de 11 a 19 de outubro, o Rio de Janeiro vai reviver alguns dos shows mais marcantes da música brasileira no Festival Clássicos, que acontece na Marina da Glória.
São 12 discos históricos, em quatro noites de apresentações que prometem transformar o palco à beira da Baía de Guanabara em uma viagem sonora por três décadas de muita criatividade e diversidade sonora. De Da Lama ao Caos, do Nação Zumbi, a O Concreto Já Rachou, do Plebe Rude, o festival propõe um mergulho no repertório que formou gerações, cruzando o rock, o samba, o rap, o reggae e o manguebeat.
Essa viagem sonora capaz de juntar gerações tem muitos destaques, como a noite que apresenta três importantes discos – Capital Inicial, IRA! e Engenheiros do Hawaí – que fizeram parte de um dos maiores projetos da música brasileira nos anos 2000: o Acústico MTV. Lançado em 1990, o Acústico MTV foi inspirado no formato americano MTV Unplugged. A proposta era simples e revolucionária: apresentar artistas consagrados em versões com instrumentos acústicos, em shows intimistas, gravados ao vivo, com alta qualidade de som e imagem.
O projeto nasceu em Nova York no fim dos anos 1980, mas ganhou no Brasil uma força própria. Aqui, ele se transformou em um fenômeno cultural, responsável por revitalizar carreiras, aproximar públicos e criar um novo padrão de gravação musical. Além dos shows ao vivo gravados para tevê, os lançamentos em CD e DVD tiveram grande repercussão.
Da Rua à Revolução: o Brasil urbano em quatro batidas
O Festival Clássicos será dividido em quatro noites temáticas, cada uma dedicada a um eixo da música brasileira contemporânea. A proposta é reconstruir, ao vivo, a energia e a relevância de álbuns que se tornaram marcos — interpretados por seus próprios autores ou por artistas convidados em shows-tributo.
A primeira noite do festival (11) será marcada pela energia das ruas e pelo poder da palavra. Gabriel o Pensador abre a programação com Quebra-Cabeça, o disco que consolidou sua voz crítica e bem-humorada, misturando rap, rock e reflexão social.
Em seguida, o Cidade Negra sobe ao palco com Sobre Todas as Forças, clássico de 1994 que colocou o reggae no coração do pop brasileiro, com mensagens de amor, esperança e resistência. Depois é a vez da Nação Zumbi incendiar a Marina com Da Lama ao Caos, marco do Manguebeat e símbolo de um Brasil que se reinventou a partir da ideia genial de Chico Science, da periferia e da lama criadora do Recife. Encerrando a madrugada, Marcelo D2 apresenta À Procura da Batida Perfeita — um show que promete unir samba, hip hop e atitude, celebrando a batida que fez o morro e o asfalto dançarem juntos. É a noite da pulsação urbana — política, poética e dançante.
A segunda noite do Clássicos (12) mergulha nas fusões e parcerias que transformaram a MPB nos anos 1990. Começa com os Los Sebosos Postizos, que rerefazem A Tábua de Esmeralda, de Jorge Ben Jor. Lenine e Marcos Suzano apresentam Olho de Peixe, uma obra-prima minimalista que mistura voz, violão e percussão eletrônica em pura poesia sonora. Às 20h, o palco recebe O Grande Encontro, com Elba Ramalho, Alceu Valença e Geraldo Azevedo, relembrando um dos clássicos mais importantes daquela década. Encerrando a noite, Xande de Pilares canta Caetano Veloso, em um espetáculo que une samba e tropicalismo, lirismo e balanço, projeto lançado mais recentemente e que ganhou o país.
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Rock e reggae na Marina: a trilha de uma geração
A terceira noite (18) é dedicada ao rock brasileiro em suas múltiplas fases e sonoridades. Plebe Rude abre o palco com O Concreto Já Rachou, disco seminal do pós-punk brasiliense e símbolo da contestação dos anos 1980. Depois vem o Ira!, que comemora os 20 anos do Acústico MTV, com arranjos que combinam fúria e sensibilidade. Humberto Gessinger revisita Acústico Engenheiros do Hawaii, mostrando a força de suas letras poéticas e sua habilidade de dialogar com o tempo. Fecha a noite o Capital Inicial, também com seu Acústico MTV, álbum que marcou uma virada na história do grupo e do rock brasileiro.

Encerrando o festival, o domingo (19) será tomado pela batida leve e consciente do reggae. Ponto de Equilíbrio abre os trabalhos com mensagens de fé, amor e resistência. Armandinho traz seu som solar e positivo, misturando reggae e pop com espírito de praia e liberdade. O Maneva apresenta seus sucessos com a energia que conquistou o público jovem. E, para encerrar, o lendário Edson Gomes fecha o Festival Clássicos com um show histórico. Uma noite de altas vibrações, união e boas energias, em um encerramento perfeito para uma celebração de quatro dias de pura música.
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Sobre cada disco:
Nação Zumbi – Da Lama ao Caos (1994)
Um divisor de águas na música brasileira. Liderado por Chico Science, o disco inaugurou o movimento Manguebeat, unindo ritmos regionais pernambucanos a guitarras pesadas, hip hop e batidas eletrônicas. A poesia urbana e crítica de faixas como A Cidade e Rios, Pontes & Overdrives marcou uma geração que buscava novas formas de expressão pós-rock nacional. É um manifesto da periferia, da lama criadora e da potência do Nordeste. O álbum “Da lama ao caos” nasce da ideia de Chico Science de criar um novo ritmo, revelando um outro nordeste e uma nova realidade. Lançado em abril de 1994, a obra mescla maracatu, coco, heavy metal, punk rock, dub e rap.
Marcelo D2 – À Procura da Batida Perfeita (2003)
Um marco da fusão entre rap e samba, D2 elevou o hip hop brasileiro a outro patamar. Com beats sofisticados e colaborações de peso, o disco mistura a tradição do samba com a linguagem urbana do rap, criando um som único e identitário. Músicas como Qual é? e Loadeando consolidaram D2 como um dos principais arquitetos da música urbana brasileira. Ao unir hip-hop e samba de maneira inovadora, o álbum consolidou a identidade artística do ex-líder do Planet Hemp e ampliou as fronteiras do gênero no Brasil. A fusão entre beats modernos e elementos da música brasileira deu novo fôlego ao rap, ajudando a aproximá-lo de um público ainda maior.
Cidade Negra – Sobre Todas as Forças (1994)
Um dos álbuns mais emblemáticos do reggae brasileiro. Toni Garrido e sua banda trouxeram uma sonoridade mais pop sem perder o discurso político e humanista. A Estrada e Doutor se tornaram hinos de uma juventude sonhadora dos anos 1990, que acreditava na paz, no amor e na resistência. O disco colocou o reggae brasileiro no mainstream, com um discurso afirmativo, negro e espiritualizado.
Gabriel o Pensador – Quebra-Cabeça (1997)
Mais maduro e politizado, o terceiro disco de Gabriel consolidou sua voz crítica e irônica. O álbum mistura rap, rock e MPB em faixas que discutem desigualdade, mídia e comportamento social. Cachimbo da Paz, com Lulu Santos, e 2345meia78 são clássicos que dialogam até hoje com o Brasil urbano e contraditório. É uma obra que equilibra protesto e humor, reflexão e groove.
Lenine & Marcos Suzano – Olho de Peixe (1993)
Uma obra-prima minimalista. Apenas voz, violão e percussão eletrônica. Lenine e Suzano criaram um novo idioma sonoro, onde o regional dialoga com o contemporâneo. Acredite ou Não e O Último Pôr do Sol traduzem a poesia nordestina com sutileza e modernidade. O disco foi revolucionário em sua simplicidade inventiva — um laboratório de sons que influenciou toda a MPB dos anos 1990.
Los Sebosos Postizos – A Tábua de Esmeralda (2012)
O projeto paralelo da Nação Zumbi homenageia o clássico de Jorge Ben Jor, reimaginando A Tábua de Esmeralda (1974) com a pegada percussiva e psicodélica do grupo. É uma celebração da alquimia musical brasileira — onde o samba-soul e a mística tropicalista ganham novos timbres. Uma ponte entre gerações, mostrando a força perene da obra de Jorge Ben e o respeito da Nação por suas raízes.
Xande de Pilares – Xande Canta Caetano (2023)
Um encontro surpreendente entre o samba carioca e o lirismo tropicalista. Xande relê Caetano Veloso com balanço, emoção e reverência. O projeto reafirma o diálogo entre MPB e samba, e destaca a versatilidade de Xande como intérprete. É um disco de afeto, que aproxima o universo da roda de samba da sofisticação poética de Caetano — um gesto de continuidade cultural.
O Grande Encontro – Elba, Alceu e Geraldo (1996)
Uma celebração da música nordestina em sua plenitude. O álbum (e turnê) reuniu três gigantes — Elba Ramalho, Alceu Valença e Geraldo Azevedo — em um espetáculo de emoção e identidade. Releituras de clássicos como Anunciação, Dia Branco e Táxi Lunar conquistaram o país. Foi um símbolo de unidade regional e afetiva, um marco da MPB popular e vibrante dos anos 1990.
Capital Inicial – Acústico MTV (2000)
O disco trouxe de volta o Capital Inicial e marcou o auge da era dos acústicos MTV. Misturando hits dos anos 80 com arranjos modernos e participações de Pitty e Kiko Zambianchi, o álbum revitalizou o rock brasileiro e introduziu o grupo a uma nova geração. Foi um dos maiores fenômenos de vendas da década e um símbolo do reencontro do público com o rock nacional.
Ira! – Acústico MTV – 20 anos (2004)
Com energia e emoção, o Ira! transformou sua fúria punk em delicadeza sem perder a força. O disco ressignificou clássicos como Envelheço na Cidade e Flores em Você, aproximando o grupo de novas audiências. Um exemplo de reinvenção estética e longevidade — o som da maturidade sem perder a rebeldia.
Humberto Gessinger – Acústico Engenheiros do Hawaii (2004)
Gravado no auge da onda acústica, o disco reafirmou o talento de Gessinger como letrista e compositor. Canções como Infinita Highway e O Papa é Pop ganharam novos arranjos e roupagens sofisticadas. O álbum é um documento de transição — entre a melancolia dos anos 80 e o romantismo introspectivo dos 2000. Gessinger se consolida aqui como cronista do desencanto urbano brasileiro.
Plebe Rude – O Concreto Já Rachou (1985)
Um dos pilares do rock brasiliense e da geração pós-punk. Lançado em plena redemocratização, o álbum é um grito político e existencial. Músicas como Até Quando Esperar e Proteção são hinos de resistência, contestação e juventude. A Plebe sintetizou o espírito do underground dos anos 80: crítico, combativo e essencialmente brasileiro. O concreto rachou — e dali brotou um novo país.