Com direção de Renato Carrera, a nova montagem de “As Bruxas de Salém”, no Teatro Casa Grande, traz de volta ao palco a tragédia de Arthur Miller — texto escrito em 1953, em plena caça às bruxas, mas que segue dolorosamente atual. A metáfora das mulheres que despertam os piores desejos ainda ecoa, reforçada pelo alarmante número de feminicídios no país.
O título original, “The Crucible”, não fala de feitiçaria. Refere-se a um recipiente usado para suportar altas temperaturas sem se romper. É uma metáfora precisa: sob o calor da intolerância e da manipulação, é testada a integridade humana. Apesar de nomear um objeto, o termo também pode ser lido como “cruz”. Como Miller disse certa vez: “uma peça não precisa ser sobre bruxas para falar de poder”.
O que se desenrola em cena não é um conto de feitiçarias, mas uma parábola sobre como informações manipuladas, medos coletivos e dogmas podem tanto salvar quanto enforcar. Em Salém, a religiosidade puritana da Nova Inglaterra é terreno fértil para a intolerância: bastam acusações infundadas para que vidas sejam destruídas. No palco de Carrera, essa engrenagem ressoa no presente — tempos de fake news, perseguições e histerias sociais.

O cenário sombrio de Daniel Jesus, concebido como um subterrâneo em constante tensão, envolve o público numa atmosfera de julgamento e claustrofobia. Os figurinos de Dani Ornellas e Biza Vianna, estilizados, dialogam com o século XVII sem perder atualidade. Cada personagem carrega sua marca visual: as jovens de Abigail Williams (Elisa Pinheiro) exibem trajes insinuantes, corpos como armas de sedução e poder; já a juíza Danforth (Vannessa Gerbelli) surge imponente, coberta de brilhos que a colocam num patamar acima de todos, símbolo da autoridade que decide destinos.
Carmo Dalla Vecchia, como o reverendo Páris, é um dos destaques. Sua caracterização o transforma em um homem que parece ter atravessado os séculos, rígido e corroído pelo medo e pela conveniência. Patrícia Pinho, na pele de Elizabeth Proctor, sustenta com dignidade a dor e o silêncio de quem suporta tudo para manter o marido em pé.

No centro da tragédia, o fazendeiro John Proctor (Marcel Giubilei) emerge não como mártir, mas como herói trágico de dimensões universais. Sua integridade, mesmo diante do erro, faz dele um dos personagens mais grandiosos da dramaturgia mundial: um homem que se recusa a renunciar à própria verdade, ainda que isso lhe custe a vida.
Carrera imprime uma direção vigorosa, sem espaço para alívio. Tudo é intenso: a música ao vivo, as projeções em tempo real, os silêncios carregados. O público não apenas assiste — participa da assembleia de julgamento, como se a histeria de 1692 pudesse se repetir a qualquer instante, agora.
Essa intensidade atualiza Miller sem suavizá-lo. Ao contrário: escancara como a intolerância segue alimentada por crenças dogmáticas, pelo medo e pelo desejo de controle. A cada cena, ecoa a pergunta: até que ponto estamos repetindo, com novas ferramentas, as mesmas injustiças do passado?
Vale ressaltar a coragem do produtor Bruno Mariozz em viabilizar um espetáculo grandioso com 15 atores em cena — um feito raro no teatro contemporâneo. Em tempos de produções cada vez mais enxutas, assumir a dimensão épica de Miller com essa força coletiva é um gesto artístico e político.

“As Bruxas de Salém” é um lembrete de que a caça às bruxas jamais terminou. Racismo, misoginia, LGBTfobia e manipulação política continuam a incendiar sociedades. Nesta montagem, Carrera, elenco e equipe não apenas revisitam um clássico: reinventam-no como espelho incômodo da contemporaneidade.
O cadinho de Miller continua em brasa. E, no fogo da intolerância, é sempre a verdade que arde primeiro.
Último fim de semana em cartaz, sexta e sábado, às 20h; e domingo, às 18h, no Casa Grande, Leblon.


Conversei com Carmo para saber mais sobre o impacto desse texto em sua carreira:
1 – Como conseguiu penetrar nesse intenso universo de moralidade, fé e julgamento do personagem?
Nós somos as vozes dos mortos em cena. Cabe a nós, atores, fazermos escolhas para comunicar as ideias que Arthur Miller teve em 1953 para a compreensão do texto nos dias atuais. Temos pratos cheios para nos servirmos com o tema — desde uma bancada evangélica que esquece que somos um país laico até os milhares de casos de pedofilia na Igreja e de abuso de autoridade para benefício próprio ou de uma minoria. Nada mais atual do que “As Bruxas de Salém”. Chamar um gay assumido como eu para fazer o reverendo Páris é chamar alguém que entende, na própria pele o que significa moralidade, fé e julgamento.
2 – Você interpreta os mais diferentes personagens, desde Nelson Rodrigues, Chiquititas, até o musical Billy Elliot. Faz algum “laboratório”?
Muito treino e muito ensaio. Não tem mágica em nosso ofício. Vim do interior, de uma família que não tinha artistas. Meu pai tocava acordeão até uns anos antes de eu nascer. Acabei não tendo a sorte de vê-lo ser artista. Ele achava que era algo menor fazer música. Preferiu ser gerente de banco, o que realmente colocaria comida em casa.
Por não ter tido uma formação nas artes ainda jovem, carrego a sensação de nunca estar pronto, de nunca estar bom o suficiente. Fico tentando melhorar e inventando coisas o tempo todo. Preciso de um diretor que me pare. Talvez essa seja uma forma de se preparar: o trauma de nunca se sentir suficientemente bom.
3 – Você e João Emanuel Carneiro (autor de novelas) possuem uma relação duradoura e de confiança. Palpita nos textos de João? E ele nos seus personagens?
Trouxe um companheiro disposto a ter uma vida em família e vice-versa. Acredito que isso era o mais importante para que nós dois fôssemos felizes. Uma vez dei um palpite numa novela dele. Estávamos casados havia pouco tempo. Ele me respondeu: “Quando você escrever a sua própria novela, pode usar essa ideia”. Hahahaha. Nunca mais palpitei nada.
4 – O texto de Arthur Miller tem muitas camadas políticas e sociais. O que é mais surpreendente dessa história de mais de 300 anos e escrita há 70?
O que mais toca é a modernidade de um texto que consegue ser anti-fake news e anti-cancelamento ao mesmo tempo. O herói da peça grita: “Me deixa ficar com meu nome”, e eu fico completamente destruído em cena vendo um santo conspurcado. O cara, ao mesmo tempo em que errou por ter quebrado um mandamento cristão, tem uma moral inabalável. Moral que o leva à forca por sua incapacidade de mentir, enquanto considera seu afeto e o exemplo que dará aos seus filhos. O amor, infelizmente, venceu — e a vida se foi.
