Corte Interamericana julga Brasil por mortes de recém-nascidos
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) realizou nesta sexta-feira (26), em Assunção, no Paraguai, a primeira audiência pública do julgamento do caso “Mães de Cabo Frio vs. Brasil”. O processo internacional apura violações de direitos humanos relacionadas à morte de ao menos 96 recém-nascidos na UTI neonatal da Clínica Pediátrica da Região dos Lagos (Clipel), em Cabo Frio (RJ), entre junho de 1996 e março de 1997.
A sessão contou com depoimentos de familiares, advogados das vítimas, representantes do Estado brasileiro e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). A sentença será divulgada nas próximas semanas, após a apresentação das alegações finais escritas pelas partes até o dia 28 de outubro.
Para a advogada Daniela Fichino, que representa as famílias das vítimas, o Estado brasileiro teve uma postura cordial, mas apresentou um número limitado de reconhecimento de violações. Segundo ela, a corte internacional pode ajudar a amenizar a dor dessas famílias.
“A expectativa é que a corte interamericana possa trazer uma sentença que faça jus a toda a luta dessas famílias, que reconheça a violação do dever de investigar, que reconheça a violação das garantias judiciais, a violação ao direito à saúde, a integridade das famílias. Esse é um caso que mobilizou muitas mães por muito tempo e que agora merece um resultado e reconhecimento do tamanho dessa dor”, disse Fichino no fim da audiência.
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Dor, luta e busca por justiça
Durante a audiência, familiares relataram em detalhes o sofrimento vivido há quase três décadas. Helena Gonçalves dos Santos, que perdeu a filha aos 15 anos, descreveu negligência no atendimento, falta de acesso à filha após o parto e omissão de informações sobre o estado de saúde da bebê.
“Queríamos estar amamentando e esse direito foi tirado da gente. (…) Não nos deixaram ser mães. Até hoje, ninguém nunca nos ofereceu suporte, ninguém nunca tratou nosso caso. (…) O que a gente queria era ter nossos filhos aqui”, reforçou Helena.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (IDH) julga nesta sexta (26), em Assunção, o caso “Mães de Cabo Frio vs. Brasil”, que apura a morte de 96 recém-nascidos na UTI neonatal da clínica Clipel, no RJ, entre 1996 e 1997.
Ester Vagas
Cesar Alejandro Nicolas Eboli, marido de Marcela Beatriz, também relatou a morte do filho por infecção hospitalar após internação desnecessária na UTI.
“Nosso filho morreu na nossa frente. (…) Chamamos um amigo médico neonatal, que disse que nosso filho tinha sido internado na UTI desnecessariamente, que foi infectado quase imediatamente na entrada da UTI, e que o antibiótico ministrado tinha sido errado”, relembrou.
Os relatos reforçaram a denúncia de que os bebês foram vítimas de infecções hospitalares causadas por práticas incompatíveis com padrões básicos de vigilância sanitária.
A advogada Daniela Fichino, que representa as famílias das vítimas, destacou que o caso revela falhas graves de fiscalização em serviços conveniados ao SUS.
“Entre 1996 e 97, todas essas mães que estão aqui foram atendidas no Hospital Santa Isabel (…). Seus bebês foram internados na UTI Neonatal da Clipel e de lá jamais saíram para os berços que estavam prontos em suas casas. (…) O que o caso ‘Mães de Cabo Frio’ mostra é que a ausência de supervisão estatal em serviços conveniados mata”, disse Fichino.
Já a perita Maria de Lurdes de Oliveira Moura reforçou, durante seu depoimento, que os bebês foram vítimas de infecções hospitalares causadas por práticas incompatíveis com padrões básicos de vigilância sanitária.
Ela apontou omissão do Estado na prevenção, fiscalização, investigação, responsabilização e reparação às famílias.
Pedido de desculpas e reconhecimento de falhas
Durante a audiência, o Estado brasileiro pediu desculpas oficialmente pelas violações de direitos humanos relacionadas à morte dos bebês.
Corte Interamericana julga Brasil por mortes de recém-nascidos em UTI de Cabo Frio nos anos 90
Ester Vagas
A advogada da União, Ílina Pontes, reconheceu que o funcionamento da clínica sem as autorizações e inspeções necessárias representou uma violação da obrigação estatal de proteger as crianças.
O Estado também pediu desculpas por manifestações discriminatórias do Ministério da Saúde durante a apuração dos fatos.
“Essa omissão representa uma violação da obrigação estatal de garantir a proteção das crianças, sobretudo as que se encontram em instalações hospitalares, ainda que privadas”, disse Pontes.
“Por esse motivo, o Estado brasileiro pede, de maneira solene, desculpas às Mães de Cabo Frio e aos seus familiares”, afirmou a representante da AGU.
Sobre a acusação de violação às garantias judiciais e proteção judicial, a AGU sustentou que o Estado Brasileiro adotou as medidas legalmente cabíveis, promovendo a investigação e propondo a ação penal em relação à morte dos 96 bebês. Os investigados foram, posteriormente, absolvidos pela Justiça.
“O Estado compreende que as garantias judiciais foram devidamente oferecidas em relação aos fatos objeto da presente demanda”, afirmou Pontes.
Durante o julgamento, os representantes do Estado brasileiro também afirmaram o desejo de retomar os diálogos com os familiares das vítimas na tentativa de construir uma solução consensual para o caso.
“Um acordo que possa atender, de forma adequada e proporcional, aos interesses dos familiares, aos limites procedimentais do caso, à realidade institucional do país e aos parâmetros interamericanos de proteção aos direitos humanos”, ressaltou o representante do Ministério das Relações Exteriores durante as alegações orais.
Apesar dos pedidos de desculpas, a AGU lembrou que a maioria dos fatos relacionados ao caso e as possíveis violações deles decorrentes estão fora da jurisdição temporal da Corte IDH, pois são anteriores à adesão do Brasil à jurisdição contenciosa da Corte, em 10 de dezembro de 1998, sem efeito retroativo.
Reconhecimento vazio
A advogada Daniela Fichino criticou o reconhecimento feito pelo Estado brasileiro e a proposta de acordo apresentada às famílias.
“O Estado apresentou a intenção de fazer um acordo sem nada. Não apresentou nenhuma medida. Apesar de toda gentileza e cordialidade, eles apresentaram uma proposta vazia de conteúdo”, analisou a advogada das famílias.
Ela também questionou o pedido de desculpas feito pelo Estado: “Dá vontade de perguntar se o pedido de desculpas também prescreveu.”
“Me parece uma grande estratégia de fato, de como fazer que as coisas saiam bem e ao mesmo tempo que nada mude, que nada vá a frente. Esse é o sentimento sobre o reconhecimento e pedido de desculpas e também sobre a proposta de acordo que não tinha nenhum conteúdo”, avaliou Fichino.
A advogada ainda destacou que o Estado brasileiro só procurou as famílias para um acordo depois da marcação da audiência na corte internacional, mais de 27 anos depois do início das violações em Cabo Frio.
Representantes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A presidente Roberta Clarke aparece ao centro.
Ester Vagas
A presidenta da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Roberta Clarke, afirmou que o Estado brasileiro não tomou a iniciativa de reparar as famílias.
“Essa corte pode reparar e trazer justiça para essas famílias que merecem realmente esta reparação. As famílias merecem estar livres da culpa que o Estado e suas autoridades lhes atribuíram”, comentou Clarke.
O que acontece agora
Com o fim da audiência, as partes têm até 28 de outubro para apresentar alegações finais escritas. A sentença será divulgada nas semanas seguintes.
Se condenado, o Brasil poderá ser obrigado a pagar indenizações, oferecer assistência psicológica às famílias, reabrir investigações e adotar medidas para evitar novas mortes em UTIs neonatais.
A Justiça Global propôs a construção de um memorial em Cabo Frio, protocolos mais rígidos de vigilância sanitária e avanços nas políticas de saúde materna e neonatal.
O julgamento é considerado um marco internacional, por tratar de violações estruturais ao direito à saúde de recém-nascidos. A decisão da Corte pode abrir precedentes para responsabilizações em casos semelhantes e forçar mudanças nas políticas públicas de saúde.
Relembre o caso
Entre junho de 1996 e março de 1997, cerca de 96 recém-nascidos morreram na UTI neonatal da Clipel, em Cabo Frio.
Quase 100 bebês morreram em UTI neonatal de Cabo Frio
Reprodução/TV Globo
Relatórios apontaram surtos de infecção hospitalar por agentes como Klebsiella. As mortes foram denunciadas por familiares, que formaram a associação Mães de Cabo Frio.
A investigação local resultou em denúncias contra médicos, mas todos foram absolvidos por falta de nexo causal. Em 2000, as famílias levaram o caso ao Sistema Interamericano.
Em 2022, a CIDH concluiu que o Brasil violou direitos à vida, saúde, proteção judicial, infância e igualdade. Em 2024, o caso foi submetido à Corte IDH.
Linha do tempo:
1996–1997: mortes na UTI neonatal da Clipel
1997–1999: investigações e denúncias locais
2000: petição ao Sistema Interamericano
2003–2007: absolvições na Justiça brasileira
2022: CIDH conclui que houve violações
2024: caso foi submetido à Corte IDH
2025: audiência pública em Assunção
Com informações da fonte
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/09/27/julgamento-sobre-a-morte-de-96-bebes-em-cabo-frio-tem-pedido-de-desculpas-e-relatos-emocionados-de-familiares.ghtml
Julgamento sobre a morte de 96 bebês em Cabo Frio tem pedido de desculpas e relatos emocionados de familiares

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