Se por muitos anos os pais recorriam à chupeta para acalmar os filhos em momentos de choro, hoje é comum encontrarmos pais que oferecem celular ou tablet para tranquilizar as crianças
Sabemos que o acesso precoce às telas tem sido cada vez mais frequente no universo infantil. Observamos crianças paralisadas diante de uma tela, como se nada mais ao redor existisse. O olhar vidrado, o corpo imóvel, a ausência de resposta e a perda da noção de tempo são efeitos preocupantes na vida de um ser em formação.
Acesso precoce às telas e desafios no desenvolvimento
Um levantamento do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), por meio da pesquisa TIC Kids Online Brasil 2022, mostra que 93% das crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos no país são usuários de internet. Deste grupo, 23% tiveram seu primeiro acesso à internet antes dos 6 anos de idade, uma proporção que dobrou desde 2015. Esses dados evidenciam a precocidade com que as telas passaram a fazer parte do cotidiano das crianças brasileiras, superando as recomendações de organizações como a Sociedade Brasileira de Pediatria, que desaconselha o uso de telas para menores de 2 anos.
Mas então, quando foi que aceitamos que uma tela pudesse substituir o colo, a conversa ou o brincar, mantendo a criança em silêncio, absorta e afastada da vida real? Se por muitos anos os pais recorriam à chupeta para acalmar os filhos em momentos de choro e sofrimento, hoje é comum encontrarmos pais que oferecem celular ou tablet para tranquilizar a criança em situações de sofrimento, frustração ou tédio. Dito isso, o problema não está na existência do objeto, mas no seu uso.
A chupeta, utilizada por determinado tempo, era retirada e a criança precisava desenvolver recursos emocionais, com o apoio dos pais, para lidar com a ausência de seu “calmante”. A mesma Sociedade Brasileira de Pediatria publicou, em 2017, uma diretriz sobre o uso da chupeta, alertando sobre prós e contras e orientando sobre seu uso em bebês na fase de amamentação. Como pontos vantajosos, destacam-se o efeito calmante, a satisfação da necessidade de sucção natural e, em prematuros, o estímulo para a transição da alimentação oral.

Siga o canal da Jovem Pan News e receba as principais notícias no seu WhatsApp!
O impacto emocional e cognitivo da “chupeta digital”
Por que muitos pais evitam ao máximo oferecer chupetas aos filhos, conhecendo os prejuízos que esse objeto pode causar, mas permitem, de forma deliberada, o uso de algo (a tela) potencialmente mais danoso e nocivo? Será que estamos diante da chamada “chupeta digital”, expressão que utilizo para ilustrar o fenômeno do “cala boca”, em que não apenas dentes e fala são prejudicados, mas toda uma rede de formação do ser humano em desenvolvimento. No campo neurológico e cognitivo, identificamos prejuízos na concentração, no foco, na capacidade de abstração e imaginação, na criatividade, entre outros. No âmbito emocional, os impactos são profundos: prejudicam os relacionamentos sociais, a qualidade dos vínculos, a interação com o mundo real, a autorregulação e a capacidade de gerenciar as próprias emoções.
A criança fica encapsulada no efeito hipnótico que a tela provoca, e o mundo ao redor deixa de existir. Assim, aquilo que deveria ser apenas um recurso eventual passa a se tornar um hábito cotidiano. Nesse ponto, a discussão deixa de ser sobre as telas em si e passa a ser sobre a responsabilidade dos adultos. Nenhuma criança nasce com uma tela nas mãos; ela aprende a pedir após a primeira oferta e experiência com o efeito calmante, que nasce da necessidade do adulto de silenciar, ganhar tempo e controlar as emoções — próprias e da criança. O risco é que, ao substituir o consolo humano em momentos de choro e estresse por um recurso digital, os pais permitam que a infância e todo o desenvolvimento infantil sejam atravessados por pixels e não pelo contato humano.
O papel dos adultos e alternativas para o desenvolvimento saudável
Não se trata de culpar os pais, nem de demonizar a tecnologia, afinal, os adultos também precisam das telas para inúmeras tarefas do cotidiano. Inclusive, os adultos também enfrentam a mesma sedução digital e passam parte do tempo em celulares ou computadores. E, se uma criança aprende muito mais pelo exemplo do que pelo discurso, a pergunta essencial é: até que ponto nós, pais, conseguimos resistir ao magnetismo digital?
Como possíveis caminhos, é fundamental pensar e criar alternativas para garantir o espaço do brincar, do diálogo em família e valorizar o adulto como figura central na condução da situação. É hora de inverter! Não é a criança que deve ficar hipnotizada pela tela, mas sim o adulto que precisa se permitir ser seduzido pelo desenvolvimento da criança e acompanhá-lo com responsabilidade.
*Por Dra. Marisa Bruno Dias Perestrelo – CRP 06-54158
Psicóloga