O multiartista Fause Haten está em cartaz no Teatro Poeirinha, em Botafogo, com a performance “Eu Sou um Monstro”, até 26 de outubro — quintas a sábados, às 20h, e domingos, às 19h. A partir desta sexta (12/09), a coluna de teatro passa a alternar críticas e entrevistas com artistas que estão ocupando os palcos cariocas.
No solo, Fause assina texto, direção e atuação. Ele mistura teatro, performance, vídeo e artes visuais para narrar um episódio real da vida do pintor Francis Bacon (1909–1992). Na véspera de uma grande retrospectiva no Grand Palais, em Paris, Bacon encontra — junto de sua agente — o corpo do amante George Dyer (suicídio). A decisão foi deixá-lo onde estava, para não comprometer a grande estreia.
A peça conduz o público para a Paris de 1971, mas não é apenas sobre Bacon: é sobre a idolatria que se converte em monstruosidade, a linha tênue entre admiração e aversão, e os limites da arte. O espetáculo questiona: o que se espera de um artista? E o que o artista espera de si mesmo?
A trajetória de Bacon foi marcada pelo drama pessoal. Expulso de casa pelo pai aos 16 anos, quando descobriu sua homossexualidade, viveu na Alemanha dos anos 1920, transitou por Paris e Berlim, e, de volta a Londres, mergulhou no expressionismo. A peça flerta com a autobiografia, entrelaçando as vidas de seus personagens com a do próprio criador.
A jornada de Haten neste trabalho é uma solitária, embora rica em colaborações pontuais que enriquecem o tecido de sua criação. O processo é íntimo, uma constante fermentação de ideias que habitam o criador até se materializarem em cena. “Eu Sou um Monstro” nasce dessa introspecção, revelando-se em camadas de significado que convidam o espectador a um encontro singular com o artista e sua obra.
Fause Haten, por sua vez, nasceu em São Paulo, filho de libaneses. Começou como estilista nos anos 2000, mas sempre transitou por várias linguagens: teatro, artes visuais, instalações e performances. O estpetáculo finaliza a trilogia autoral dos solos anteriores, “A Feia Lulu” (2014), inspirado em Yves Saint Laurent e Pierre Bergé, e “Lili Marlene – Um Anti Musical” (2017), sobre a vida de um ator transformista.
Conversei com Fause sobre o espetáculo e “otras cositas más”:
1 – Se sua vida fosse um figurino, seria mais clássico ou mais experimental?
Completamente experimental! E, se possível, diferente a cada dia. Gosto do fluxo, do movimento, do risco. O que me interessa é o gesto.
2 – Ousadia: combustível ou peso na sua carreira?
Os dois: combustível e peso. Eu gosto do risco. Ele aparece nas minhas performances, nas minhas palavras, nos meus gestos. É o que me mantém vivo: a iminência da queda. Mas claro, também é sempre um ponto de tensão.
3 – Você já disse que a moda pode ser puro teatro. Em que momento a paixão pela arte total falou mais alto que a moda?
A moda é feita, em grande parte, por artistas. Durante muitos anos me expressei apenas através das roupas. Mas os desfiles começaram a se tornar palco: cenário, luz, roteiro, trilha sonora… isso abriu novas possibilidades. Foi natural sair da plateia e ir para a escola de teatro. E, dali, expandir para as artes performáticas e visuais. São 40 anos de percurso que me trouxeram até aqui.
4 – Qual personagem de teatro gostaria de representar?
Não tenho esse sonho idealizado de interpretar personagens já escritos. Como me construí autor e performer, sigo minhas investigações muito pessoais. A arte é meu lugar de fala. Fui ensinado a ser discreto e comedido, mas isso sufoca. A arte é meu grito desmedido. Hoje, meu maior desejo no teatro é o próximo grito.
5 – Quando, na sua vida, você é um monstro?
Todos os dias! Nasci gay em um mundo conservador, e assim me percebi “monstro”. Vivi anos escondido, disfarçando essa figura assustadora que somos nós, LGBT+ na sociedade contemporânea. Construí uma carreira, explodi tudo várias vezes, surpreendi em nome dos meus desejos artísticos — e me “monstrifiquei” de novo. Não sou identificável em um único formato. Minhas esculturas são um pouco roupas; minhas performances, um pouco teatro; meus gestos, um tanto dúbios. Ocupo sempre esse lugar borrado entre dois ou mais universos, criando algo inesperado, desconhecido, anormal. Assumir essa anormalidade como artista é libertador. Ela me permite ser quem sou, fortalece minha generosidade para aceitar os outros como são — e até acolher a surpresa ou a desaprovação que eu possa causar.